quarta-feira, 30 de março de 2011

Formalismo russo VII


FORMALISTAS RUSSOS
TERCEIRA PARTE - A NARRAÇÃO
Como é feito "O Capote" de Gógol
EIKHENBAUM, Boris (1886-1959 )
"A composição da novela depende em grande parte da participação do tom pessoal do autor em sua estrutura. Em outras palavras, este tom pode ser um princípio organizador, criando em maior ou menor escala uma narração direta; mas pode ser apenas uma ligação formal entre os acontecimentos, contentando-se com um papel auxiliar. (...).
"Podemos encontrar um material fecundo para o estudo da 'narração direta' nas numerosas novelas de Gógol ou em certos textos de sua autoria. A composição em Gógol é apenas definida pelo enredo; este é sempre pobre, verdadeiramente inexistente: Gógol parte de uma situação cômica qualquer (que às vezes é cômica por si mesma), e esta serve de estimulante, de pretexto para uma acumulação de procedimentos cômicos. (...).
"Por outro lado, Gógol destaca-se pelo fato de que ele bem sabe ler suas próprias obras, como o testemunham muitos de seus contemporâneos. Podemos distinguir nele dois tipos de leitura: a declamação patética e melodiosa, e a maneira particular de apresentação, uma imitação mímica que ao mesmo tempo, como indica Turqueniev, não se transforma numa simples leitura teatral de papéis. (...).
"(...) a narração direta encontra-se na base do texto de Gógol, o qual se organiza a partir de imagens vivas da língua falada e das emoções inerenres ao discurso. Melhor que isso: esta narração não tende para uma simples narração, um simples discurso, mas ela reproduz as palavras pela interpretação mímica e articulatória.  As frases são escolhidas e ligadas menos pelo princípio lógico que pelo do discurso expressivo no qual a articulação, a mímica, os gestos sonoros assumem um papel particular. (...).
"A atitude particular de Gógol em relação aos nomes e prenomes e sua engenhosidade neste domínio foram já anotadas na literatura, por exemplo, no livro do Prof. I. Mandelchtan: 'Este modelo de formação de nome que visa ao rir através das lágrimas liga-se à época em que Gógol distraía-se a si mesmo. (...).
"Portanto, em Gógol, a trama tem apenas uma importância marginal; por essência, é estática. (...).
"A partir dessas posições gerais sobre a composição, apoiando-se no que foi exposto aqui sobre Gógol, tentaremos estabelecer a base da composição fundamental de O Capote. Esta novela é particularmente interessante para este gênero de análise porque a narração puramente cômica, que se compõe de todos os procedimentos do jogo estilístico próprios de Gógol, vincula-se à declamação patética que constitui uma segunda base de composição. (...).
"Consideraremos, inicialmente, de forma isolada, os procedimentos principais da narração em O Capote e, logo após, examinaremos seu sistema de combinações.
"Os diferentes trocadilhos desempenham um papel importante, sobretudo no início. Estão construídos ou por uma analogia fônica, ou por um jogo de palavras etimológicas, ou por um absurdo subentendo. (...) 'Um departamento...'; (...) 'coincidência etimológica'; (...)  trocadilhos etimológicos; (...) O nome Akaky Akakievitch Bachmakievitch [titica filho de titica de sapato = nada, menos que insignificante?]; (...) (O trocadilho é levado imperceprtivemente ao absurdo) 'e todos os parentes de Bachmatchkine sem exceção, classificavem-se no gênero dos que se contentam em mudar as solas das botas que calçam umas duas ou três vezes por ano, apenas' (...).
"Esses são os tipos principais de trocadilhos empregados por Gógol em O Capote. Podemos acrescentar ainda um outro procedimento que visa ao efeito fônico. Falamos acima da afeição de Gógol por todos os nomes e designações destituídas de sentido; esta espécie de palavras 'transracionais' abre largas perpectivas a uma escolha fônica particular. Akaky Akakievtch é o resultado de uma escolha fônica bem definida; não é sem razão que toda uma anedota acompanha este modelo [a escolha da gestante, mãe de Akaky]. (...)
"(...) 'hemorroidais'. Essa última palavra está colocada de maneira a obter um poder expressivo particular e nós o percebemos como um gesto cômico sonoro, independente do sentido. Foi preparado, por um lado, pelo procedimento da progressão rítmica, por outro, pelas terminações rimadas [que se perdem na tradução]. (...)
"[Gógol] atenuou este gênero de procedimento na narração definitiva, inseriu trocadilhos e anedotas, mas também introduziu a declamação, tornando complexa a primeira base composicional. Resulta assim um efeito grotesco no qual a dissimulação do rir alterna-se com a do sofrimento; e uma e outra tomam sentido de um jogo, em que se sucedem convenientemente gestos e entoações. (...)
" Examinaremos agora esta alternância, a fim de apreender o próprio tipo de combinação dos procedimentos particulares. (...) Vimos que esta narrativa é de caráter mímico e declamatório, e não de acontecimentos sucessivos: não é um narrador, é um Gógol intérprete, até comediante, que transparece no texto de O Capote. Qual a trama desta representação? 
"A novela inicia por um conflito, por uma interrupção, por um brusco mudar de tom. A introdução rápida ('no Ministério') para subitamente e a entoação épica do narrador à qual nos fixávamos dá lugar a um tom sarcástico, de uma irritação excessiva. A composição primeira é substituída pelas digressões, várias, das quais resulta um efeito de improvisação. (...) A narração cômica é subitamente interrompida por uma digressão sentimental e melodramática que caracteriza os procedimentos do estilo sentimental. Este procedimento eleva a simples anedota de O Capote ao nível do grotesco [o jovem colega de trabalho que se comove]. (...) O episódio melodramático é utilizado para constraste com a narração cômica. (...).
[quando narra os costumes de Akaky em casa] "O desacordo entre a entoação solene e séria e o conteúdo semântico é utilizado novamente como procedimento grotesco. (...) Este desenho esboçado na primeira parte e que entrecruza a narração puramente anedótica com a declamação melodramática e solene, qualifica toda a composição de O Capote como grotesca. (...).
"A anedota desenvolvida no final nos distancia da 'pobre história' e de seus episódios melodramáticos. É um retorno à narração puramente cômica do início e a todos os seus processos. Com o fantasma de bigodes, todo o grotesco dasaparece na sombra e se dissolve no riso", B. Eikhenbaun, Formalistas russos, p.227-244.

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