domingo, 31 de julho de 2011

Missa das onze e meia


Fui dormir muito tarde, perto das 4 da manhã, mas terminei, acho, o artigo para o congresso em Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. Parte do preço foi não conseguir acordar cedo. Nem a demoníaca Sombra Viva foi capaz dessa façanha. Resultado: cheguei com quase meia hora de atraso. Fui, no entanto.

“Vós abris as vossas mãos e saciais os vossos filhos” (Salmo 144).

Folhetim II

2

Percebi, num certo dia, ao amanhecer, que não era eu que habitava a casa, convivendo com aquelas pessoas. Era aquele espaço, com aquela gente toda, que me habitava. Lembro-me bem que esta sensação causou-me ainda mais estranhamento que o fato de poder atravessar paredes e não ser percebido pelos outros moradores. Isso se deu naquela manhã porque tive a certeza de que não importava mais onde eu estivesse: eu estava no mesmo lugar, estava sempre naquela casa, com a roseira a dois pés da janela. Duas coisas consegui articular daquilo tudo. Primeiro: se, onde quer que eu estivesse eu estava sempre no mesmo lugar, aquela casa tinha que ser o próprio mundo, o que não era nem minimamente razoável. Segundo: se, por mais que eu atentasse os ouvidos, não conseguia ouvir dos moradores uma palavra sequer que não se referisse àquele lugar, eu só podia pensar que não conhecessem outra casa. Meu pudor de lucidez não me permitiu jamais tentar conversar com um deles. Apenas os ouvia e eles de mim jamais ouviram uma só palavra.

Devo ter dormido e não vi, mas num outro dia acordei e a casa havia "pegado fogo". Um incêndio horrível, como contavam.

sábado, 30 de julho de 2011

Just you and me

Folhetim


1

Essa rosa aqui eu a cultivo há quase trinta anos. Ela é testemunha das nuvens todas que povoaram meu espírito desde que entrei pela primeira vez nesta casa. Nuvens de poeira, visíveis claramente pelas lâminas de luz que penetravam o ambiente. Num susto, algo me fez parecer com aquela luz penetrante. Neguei essa imagem imediatamente. Mais certeza tinha era de que eu fazia parte da poeira que levantava a cada passo que dava. A casa podia ser vista, de fora e por dentro: tinha paredes, em que se podia ver cores, partes mais desgastadas, janelas e portas, chão e teto, moradores, tudo. Eis a primeira dificuldade: eu podia ver mas não podia sentir esses limites e essas presenças. Era como se eu estivesse entrando num espaço vazio, mergulhando num abismo de estrutura e de comunicação, pois era possível transpor paredes. Estive aqui mais duas vezes antes de me decidir vir morar neste lugar em que, de alguma maneira, frequento há quase três décadas

Esta foi apenas a primeira impressão. Uma impressão de poeta, talvez, e outras viriam para se colocar sobre ela.

O tempo

Quando não tiver mais nada
Nem chão, nem escada
Escudo ou espada
O seu coração... Acordará

Quando estiver com tudo
Lã, cetim, veludo
Espada e escudo
Sua consciência... Adormecerá

E acordará no mesmo lugar
Do ar até o arterial
No mesmo lar, no mesmo quintal
Da alma ao corpo material

Hare Krishna Hare Krishna
Krishna Krishna
Hare Hare
Hare Rama Hare Rama
Rama Rama
Hare Hare

Quando não se tem mais nada
Não se perde nada
Escudo ou espada
Pode ser o que se for... Livre do temor

Hare Krishna Hare Krishna
Krishna Krishna
Hare Hare
Hare Rama Hare Rama
Rama Rama
Hare Hare

Quando se acabou com tudo
Espada e escudo
Forma e conteúdo
Já então agora dá... Para dar amor

Amor dará e receberá
Do ar, pulmão; da lágrima, sal
Amor dará e receberá
Da luz, visão do tempo espiral

Amor dará e receberá
Do braço, mão; da boca, vogal
Amor dará e receberá
Da morte o seu guia natal

Adeus dor (4x)

Hare Krishna Hare Krishna
Krishna Krishna
Hare Hare
Hare Rama Hare Rama
Rama Rama

NANDO REIS /ARNALDO ANTUNES




sexta-feira, 29 de julho de 2011

Ainda


Aquele DVD do Buena Vista Social Club – tão procurado, que demorou tanto, que chegou atrasado, que ainda tenho ali, na estante – o que era? Aquela bolsinha verde – para guardar coisinhas, tipo protetor solar, pouco dinheiro e identidade, que ainda tenho ali, dentro de outra mochila – o que era? Aquele quadro do poeta pouco conhecido, que dizia “há um sonho nascendo, que não se pode perder, nem com a dor esquecer, que alguma chance virá” ¹, que eu ainda tenho aqui na parede em frente de mim – o que era? Aquela minha insistente tentativa de comprar a blusa errada pra você, pra ver se acertava – o que era? Impossível essas coisas não serem ainda. Não serem mais em mim é impossível. Não há tempo, só o espaço que foi vivido e assim permanece inteiro, completo, intacto, inabalável. Eu me abalo sem que minha realidade se abale. Sou eu mesmo. E “o que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós” ². Aqueles chamados – o que eram? Aqueles silêncios... Esses mesmos silêncios. Aquele cãozinho compartilhado – o que era? O que havia de nós naquele cãozinho – o que era? Aqueles momentos todos – o que eram? Não adianta anotar aqui o que eu sei o que era e que hoje revelam as eternas dores dos sonhos interrompidos. Eternamente vividos no espaço pleno de um tempo que não há. Eu sonhei que sonhava e neste sonho dentro do sonho eu vivi o mais perfeito dos sonhos: a realidade de amar e de ser amado. Agora vivo nele – no sonho – dentro do sonho – do sonho. Minha única vida, impossivelmente criada. 

¹ Celísio Nunes de Souza
² Clarice Lispector

terça-feira, 26 de julho de 2011

Eu sem você...

Momento de silêncio. Ao som de Baden Powell.



Ou quase um sonho. Por falar em sonho, vou voltar para a literatura, que a noite é longa e não é mais criança.

Antonio Nóbrega

Lunário perpétuo. Povo em Pernambuco que liga o som da gente a todos os possíveis.

Happiness runs...

Sons de outros tempos que me lembram de agora, como nunca.



Ouvi primeiro aqui.






segunda-feira, 25 de julho de 2011

O Narrador é um grande problema


Riobaldo é um desgraçado mentiroso que não tem o que fazer, sem contar que nasceu pra sacanear. Lembrem-se: ele conta é sentado na varanda, estirado na rede do “bem-bão do Urucuia”, rico de terras herdadas do seu (dele) Padrin Selorico (pai?). Vou provar apenas num trecho (refiro-me sempre à 19ª edição da Nova Fronteira; então: p.26) e vou me intrometendo, comentando entre colchetes as dores da revolta: “De primeiro [quer dizer, não agora, que vive outra vida], eu fazia e mexia e pensar não pensava [mentira, pensava errado? Mas pensava]. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp‟ro, não fantaseia [o povo todo tá fora, por causa que o que faz na vida, o povo, é puxar “difícil de difícel”, moendo]. Mas, agora, feita a folga que me vem [e feita a mangação sem tamanho], e sem pequenos desassossegos [nem grandes, evidentemente], estou de range rede [o “bem-bão já referido, com tempo de sobra pra não fazer nada]. E me inventei [achou serviço] nesse gosto [serviço e gosto], de especular ideia” (ROSA, 2001, p.26). Não satisfeito, ainda tripudia, um tantinho depois (p.30): “Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado”. Sinceramente, não sei se eu mereço o título de “pobre coitado” por ter escolhido para estudar logo esse, no meio de tantos, mas tantos livros...

Imagem: clubedolivro.worpress.com

domingo, 24 de julho de 2011

27 anos

Amy Winehouse
Janis Joplin

Jimi Hendrix
Jim Morrison
Brian Jones

De uma maneira ou de outra, todos com 27 anos de idade.

Missa das onze e meia


O Sonho de Salomão

"E Deus disse  a Salomão: 'Já que pediste esses dons e não pediste para ti longos anos de vida, nem riquezas, nem a morte de teus inimigos, mas sim sabedoria para praticar a justiça, vou satisfazer o teu pedido; dou-te um coração sábio e inteligente, como nunca houve outro igual antes de ti, nem haverá depois de ti'", Reis (3, 11-12).

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Hesitação


"A ciência não nos mostrou ainda se a loucura é ou não o sublime da inteligência", Edgar Alan Poe, em Histoires grotesques et sérieuses, Garnier-Flamarion, p.95.

Imagem: chc.cienciahoje.uol.com.br

Cuitelinho


Cuitelinho

Cheguei na beira do porto
Onde as ondas se espáia
As garça dá meia volta
E senta na beira da praia
E o cuitelinho não gosta
Que o botão de rosa caia, ai, ai

Aí quando eu vim de minha terra
Despedi da parentaia
Eu entrei no Mato Grosso
Dei em terras paraguaia
Lá tinha revolução
Enfrentei fortes bataia, ai, ai,

A tua saudade corta
Como aço de navaia
O coração fica aflito
Bate uma, a outra faia
Os óio se enche d`água
Que até a vista se atrapaia, ai, ai.

Paulo Vanzolini / Antônio Xandó

Imagem: jcuitelo.com.br

Tijolo


Eu quase fui, mas não sou economista. Conheço o sistema capitalista apenas o suficiente para acreditar que ele serve ao que há de mais ruim no ser humano: vaidade, ganância, ignorância e mentira. Não poderia jamais falar de mim, sem falar de minha gente, "gente de silêncio", como se diz lá em casa. Da mesma estirpe do povo da Yerma de Lorca. Povo de montanha, vãos de serras, buracos do sem fim, "veredas mortas, veredas tortas" de curvas das águas e dos nomes...  As palavras nos saem doídas, como se fossem de pedras (estou ouvindo sugestões de lições de João de Cabral) e nós, da minha gente, as ouvimos, as palavras, na relação direta com a maneira como nós as produzimos, nós, essa gente de silêncio, que sente dor ao falar. Por isso sempre foi pra mim muito mais fácil ler e escrever (ações praticadas no Reino do Silêncio, sem a tensão da necessidade da resposta imediata, da devolução da palavra tantas vezes mal formulada). Outro traço de mim, comum a minha gente, é a tendência ao "mandonismo", que combato diariamente, "numa luta sem trégua", como mais de uma vez me testemunhou minha querida companheira da vida inteira, quer ela queira ou não (veja a prova já escrita do que acabo de referir). Por baixo da máscara do "conciliador", "político", como muitos me veem (sei que muitos me veem de muitos outros jeitos – recepção não se controla, como já defendeu um psicanalista cujo nome nem gosto de escrever – ,mas sabendo disso, isso já não é problema meu), creia que já habitou alguém que achava, ao 16 anos, que era Goethe, que era Homero... Vou me possibilitando corrigir, deixando-me polir, sem resistência maior do que aquela que me é própria, como ensina a pedra diante da força da técnica do martelo na mão do artista. Ontem um amigo me disse que se impressionava de me ver tão "sereno e resistente" debaixo da chuva de canivetes abertos como a que enfrento nesses dias. Eu respondi apenas que não me achava tranquilo, mas que a resistência se devia, com toda a certeza que posso ter, ao fato de eu saber quem sou e o que quero e espero, e da fé que manifesto no que tenho sido ao longo da vida. São momentos difíceis que enfrento com dificuldades, como todos fazem, eu acho, mas rolando a palavra/pedra dentro da boca, arredondando-a. O silêncio e palavra medida e demorada fazem  com que eu me mantenha no caminho do que eu preciso ser: melhor. Vai demorar, tanto melhor, mais tempo terá o artista para acabar seu sonho de beleza.

Imagem: mashpedia.com.br

terça-feira, 19 de julho de 2011

Jogo


Essa figurinha da foto se chama Sombra Viva e me pertence. Ela não tem pai conhecido, e a dona de sua mãe não sabe dizer precisamente quando nasceu minha adorável cadelinha. Calculo que está hoje com uns 60 dias de vida, mas coloquei pessoas para investigar antropologicamente (por analogia, apenas, é claro, na falta de termo melhor) sua linha de parentesco e a vida desregrada de sua mãe. Antes mesmo de conhecê-la já havia lhe dado nome e sobrenome. Encontrei-a num abrigo para animais, como ela, destinados à adoção. Estavam lá, Sombra e seu irmão, muito agitados, quando os fui visitar no sábado, 25 de junho último. Como eu já havia me decidido por uma menina, seu irmão ficou lá, muito mais agitado, à espera de um nome.

Dificílimo dizer o que essa criaturinha significa para mim. Eu recuso terminantemente as sugestões de respostas dos psicólogos. Diante das travessuras de Sombra, que relatava a um colega de trabalho, este me perguntou, esperando uma resposta certa: “é mais alegria ou mais raiva?” Para surpresa dele, acho, eu respondi que se tratava de um empate técnico. O fato é que Sombra exige certos procedimentos, digamos assim. Exige que coisas menores sejam depositadas em lugares mais altos, por exemplo, sob pena de destruição total ou que seja definida uma nova função ou utilidadde para o objeto manipulado por ela.

Com essa carinha, destrói o recipiente em que sirvo sua própria comida. O da bebida também. Estou esperando receber meu salário para comprar recipientes daqueles em que são servidos os pit bulls e esses cãezinhos maiores um pouco. Seria de gosto vê-la roendo aquela panela de 3 quilos de ferro fundido ou correndo com ela pela casa toda, empurrando e chutando, como Sombra faz sempre que eu pego um livro do Todorov pra ler. Acho que ela, assim como eu, tem alguma coisa contra esse... Essse... Formalista.

Agora mesmo, coloquei comida na cumbuca e água na tigela e me sentei para ler Tzvetan Todorov analisando os modos de ficção do Northop Frye. Sombrazinha procurou brincadeira comigo e eu a espantei. Pronto: foi lá, derramou toda a ração, virou a cumbuca, derramou a água e saiu correndo pela casa com a tigelinha. Tudo calculado, já bem sei. Fiz que não era comigo. Cinco minutos depois, parou. Veio. Eu com o computador ligado, livro na mão, caderno no colo, caneta na outra mão, fazendo anotações importantíssimas, é claro. Northop Frye! Todorov. Num lance, num pulo e num golpe que não duraram meio segundo, mordeu e arrancou um quarto da página do meu caderno. Fechei o livro e acendi um cigarro.

Devo confessar que o jogo está 9 a 8 pra ela.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

A Educação pelo espaço


"O sertão me produziu, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca". Riobaldo falando, em Grande Sertão: Veredas, de JGR.

E Educação pela noite


"A minha análise implica o desdobramento do ser, segundo o qual os 'outros' de Macário são Penseroso e Satan, sendo que este lhe propõe, em oposição ao exemplo do primeiro, uma espécie de educação pela noite - expressão usada por causa da 'educação pela pedra', de João Cabral de Melo Neto. Este, partindo das conotações de secura, aridez, linha nítida, visa a promover no ofício do poeta as normas de consisão e máxima lucidez. A 'educação pela noite', que estou imaginando, partiria das conotações de mistério e treva, para chegar a um discurso aproximativo ou mesmo dilacerado, como convém ao derrame sentimental unido à liberação das potências recalcadas no inconsciente". Antonio Candido, A educação pela noite e outros ensaios, Ática, 2003.

Imagem: baixegospel.com.br

A Educação pela pedra


A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

*
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.


João Cabral de Melo Neto, A Educação pela pedra, Nova Fronteira, 1996.

Nadico


Tio Nadico, Reinaldo de batismo, morreu ontem de noitinha e foi enterrado hoje à tarde. Longa vida à margem. Já casado com uma das irmãs de meu pai, sei que quando este último se casou recebeu ajuda de Nadico nos primeiros tempos. Muitos tempos passados e já separado, Nadico viveu longos dias e noites de isolamento quase completo. O velório revelava a conta exata: praticamente ninguém parou o adeus. Histórias mal contadas e mal escondidas certamente foram caladas no seu peito, com ele, nessa última pescaria. Sua alma foi encomendada por um padre alemão (polonês?), mas com belas, serenas e bem escolhidas palavras da língua portuguesa e da liturgia católica. As mais belas? "Oh, Senhor, não olhai os pecados de seu filho, nosso irmão, Reinaldo, mas a fé que o animava". Adeus, Tio.

O Tecido


"O tear
o tear
o tear
o tear
o tear

quando pega a tecer
vai até ao amanhecer

quando pega
a tecer,
vai até ao
amanhacer..."
                  (BATUQUE DOS GERAIS)

Epígrafe para UMA HISTÓRIA DE AMOR (Festa de Manuelzão)
João Guimarães Rosa, Ficção Completa, p.543.

Imagem: carolcita.livejournal.com

Sons 4

Pra ver e ouvir Aretha Franklin: http://www.youtube.com/watch?v=AkqyLsDqgv0

 

Bridge Over Troubled Water


When you're weary
Feeling small
When tears are in your eyes
I will dry them all

I'm on your side
When times get rough
And friends just can't be found
Like a bridge over troubled water
I will lay me down
Like a bridge over troubled water
I will lay me down

When you're down and out
When you're on the street
When evening falls so hard
I will comfort you

I'll take your part
When darkness comes
And pain is all around
Like a bridge over troubled water
I will lay me down
Like a bridge over troubled water
I will lay me down

Sail on Silver Girl,
Sail on by
Your time has come to shine
All your dreams are on their way

See how they shine
If you need a friend
I'm sailing right behind
Like a bridge over troubled water
I will ease your mind
Like a bridge over troubled water
I will ease your mind.

Paul Simon e Art Garfunkel

Imagem: interactive.wxxi.org.

domingo, 17 de julho de 2011

Para a dimensão da noite 1

Funchal, Ilha da Madeira

Eixo da discussão em “Educação pela noite”,  de Antonio Candido.

1
Come, thick night
And pall thee in the dunnest smoke of hell  (Shakespeare, MACBETH).

Indicação da produção, com destaque para Macário e A noite na taverna. Álvares de Azevedo teria apoiado sua produção literária em estudos críticos destacáveis: o prólogo para o Macário e prefácio da segunda parte para a Lira dos vinte anos. Neste último a binomia, o choque dos contrários, um dos pressupostos da estética romântica. Esforço de superação das diferencias entre os gêneros literários. Mistura do “horrível” com o “sublime, belo, doce e meigo”. A tensão não se sustenta e no extremo resulta em textos de qualidade menor. Na psicologia, margens; na estrutura, desordem. Ressalva importante: toda a obra do autor é publicada após sua morte, portanto à revelia, deixando a dúvida sobre se a desorganização ou desnível dos textos é deliberada ou não.

2
A estrutura da primeira parte do Macário. A ação se passa toda à noite. Articulação de humor, debate moral e psicológico. Jogo entre interior e exterior: 1ª cena (interior)=quarto da estalagem; 2ª cena (exterior)=caminho da cidade; 3ª cena (interior)=sala na casa de Satan; 4ª cena (exterior)=cemitério e 5ª cena (interior)=quarto da estalagem. Tensão entre o cinismo ingênuo do adolescente Macário e o cinismo autêntico de Satan. O sonho de Macário sobre um túmulo é explicado por Satan: “Suspiro de sua mãe moribunda, gemido noturno da Natureza”. Uma atmosfera de sonho liga a primeira à última cena de Macário. Satan descreve a cidade de São Paulo com sarcasmo, desencanto e poesia. A Invenção literária da cidade de São Paulo; espaço ficcional instaurado por Álvares de Azevedo. O noturno aveludado e acre do Macário suscitou a noite paulistana como tema, caracterizado pelo mistério, o vício, a sedução do marginal, a inquietude e todos os abismos da personalidade, numa dimensão quase mitológica. A segunda parte é dominada por Penseroso, personagem de tom angélico, em oposição ao demônio, guia da primeira parte. Ainda a noite e o ambiente fantasmagórico. Dois temas: o amor sentimental e puro e o debate sobre a literatura. O simbolismo da dualidade dos lugares: primeira parte em São Paulo (sem ser nomeada) e a segunda parte na Itália (região também indefinida, senão como “raízes europeias”). Morte de Penseroso e reaproximação de Satan. Macário é frágil síntese entre o bem e o mal. Homem/Diabo, Fausto/Mefistófeles, Penseroso/Homem Angélico, Satan/Homem Diabólico, Macário/Homem Homem. O drama não acaba, pois se encaixa em A noite na taverna. Estruturalmente, um começa onde o outro supostamente termina: o ver a orgia pela janela. Que noite! Que vida! O estudante entrou na noite paulistana, passou pela Itália e acabou nesse espaço igualmente noturno, indeterminado, sangrento. A janela que termina o drama inicia a novela. Com a ressalva de tudo não tratar-se senão de um sonho. A análise implica o desdobramento do ser, segundo o qual, os ‘outros’ de Macário são Penseroso e Satan, sendo que este lhe propõe, em oposição ao exemplo do primeiro, uma espécie de educação pela noite: conotações de mistério e treva, discurso aproximativo ou dilacerado, potências recalcadas do inconsciente.

3
Macário é uma ilustração de uma visão da alma; A noite na Taverna, uma ilustração de certa visão de mundo. Ambos formam a representação do destino como fatalidade inexorável. As digressões sem limites e a frouxidão da estrutura de textos como Lábios de sangue (novela de episódios justapostos, como A noite na taverna?), O poema do frade, o poema Um cadáver de poeta revelam tendências de época, de assunto-puxar-assunto, assim como traços pessoais do artista.

4
O clássico tende ao resumo, porque mostra o essencial e com isto caminha para o abstrato. A inclinação romântica sugere a realidade por meio da multiplicação, não da subtração. Essa estética da multiplicação atenua o esforço de organizar a matéria, porque diminui o gosto pela seleção. Daí as estruturas vacilantes, com acúmulo de incidência e digressões, resultando uma composição em arabesco, extremamente caprichosa, na qual o fio da meada é torcido até se perder. Em Álvares de Azevedo há uma fuga permanente do assunto, uma espécie de adiamento compulsivo que retira muitos dos seus escritos do âmbito da ficção em prosa ou verso, para reduzi-los a vastas meditações. Acrescente-se a fuga do presente.  Ressalve-se, novamente, que o artista não teve tempo de dizer o que estava acabado, nem de organizar o que era para ser publicado.

A educação pela noite e outros ensaios, p.10-22, Antonio Candido, Ática, 2003.

Imagem: madeiralive.eu

Alma


Ariadne, Ariadne,
Minha querida Ariadne.
Seu novelo não pode se chamar razão: guia inadequado.


Imagem: yousaytoo.com

Satan descreve São Paulo a Macário


MACÁRIO

(...) Falta-nos muito para chegar?

SATAN

Não. Daqui a cinco minutos podemos estar à vista da cidade. Hás de vê-la desenhando no céu suas torres escuras e seus casebres tão pretos de noite como de dia, iluminada, mas sombria como uma essa de enterro.

MACÁRIO

Tenho ânsia de lá chegar. É bonita?

SATAN ( boceja )

Ah! é divertida.

MACÁRIO

Por acaso também há mulheres ali?

SATAN

Mulheres, padres, soldados e estudantes. As mulheres são mulheres, os padres são soldados, os soldados são padres, e os estudantes são estudantes: para falar mais claro: as mulheres são lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes vadios. Isto salvo honrosas exceções, por exemplo, de amanhã em diante, tu.

MACÁRIO

Esta cidade deveria ter o teu nome.

SATAN

Tem o de um santo: é quase o mesmo. Não é o hábito que faz o monge. Demais, essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma vila e pobre como uma aldeia. Se não estás reduzido a dar-te ao pagode, a suicidar-te de spleen, ou a alumiar-te a rolo, não entres lá. É a monotonia do tédio. Até as calcadas!

MACÁRIO

Que têm?

SATAN

São intransitáveis. Parecem encastoadas as tais pedras. As calçadas do inferno são mil vezes melhores.Mas o pior da história é que as beatas e os cônegos cada vez que saem, a cada topada, blasfemam tanto com o rosário na mão que já estou enjoado. Admiras-te? por que abres essa boca espantada? Antigamente o diabo corria atrás dos homens, hoje são eles que rezam pelo diabo. Acredita que faço-te um favor muito grande em preferir-te à moça de um frade que me trocaria pelo seu Menino Jesus, e a um cento de padres que dariam a alma, que já não tem, por uma candidatura.

MACÁRIO

Mas, como dizias, as mulheres ...

SATAN

Debaixo do pano luzidio da mantilha, entre a renda do véu, com suas faces cor-de-rosa, olhos e cabelos pretos (e que olhos e que longos cabelos!) são bonitas. Demais, são beatas como uma bisavó; e sabem a arte moderna de entremear uma Ave-Maria com um namoro; e soltando uma conta do rosário lançar uma olhadela.

MACÁRIO

Oh! a mantilha acetinada! os olhares de Andaluza! e a tez fresca como uma rosa! os olhos negros, muito negros, entre o véu de seda dos cílios. Apertá-las ao seio com seus ais, seus suspiros, suas orações entrecortadas de soluços! Beijar-lhes o seio palpitante e a cruz que se agita no seu colo! Apertar-lhes a cintura, e sufocar-lhes nos lábios uma oração! Deve ser delicioso!

SATAN
Tá! tát! tá— Que ladainha! parece que já estás enamorado, meu Dom Quixote, antes de ver as Dulcinéias!


MACÁRIO

Que boa terra! E o Paraíso de Mafoma!

SATAN

Mas as moças poucas vezes tem bons dentes. A cidade colocada na montanha, envolta de várzeas relvosas, tem ladeiras íngremes e ruas péssimas. É raro o minuto em que não se esbarra a gente com um burro ou com um padre. Um médico que ali viveu e morreu deixou escrito numa obra inédita, que para sua desgraça o mundo não há-de ler, que a virgindade era uma ilusão. E contudo, não há em parte alguma mulheres que tenham sido mais vezes virgens que ali.

MACÁRIO

Tem-se-me contado muito bonitas histórias. Dizem na minha terra que aí, à noite, as moças procuram os mancebos, que lhes batem à porta, e na rua os puxam pelo capote Deve ser delicioso! Quanto a mim, quadra-me essa vida excelentemente, nem mais nem menos que um Sultão escolherei entre essas belezas vagabundas a mais bela. Aplicarei contudo o ecletismo ao amor. Hoje uma, amanhã outra: experimentarei todas as taças. A mais doce embriaguez é a que resulta da mistura dos vinhos.

SATAN
A única que tu ganharás será nojenta. Aquelas mulheres são repulsivas. O rosto é macio, os olhos lânguidos, o seio moreno Mas o corpo é imundo. Tem uma lepra que ocultam num sorriso. Bofarinheiras de infâmia dão em troca do gozo o veneno da sífilis. Antes amar uma lazarenta!

MACÁRIO

És o diabo em pessoa. Para ti nada há bom. Pelo que vejo, na criação só há uma perfeição, a tua. Tudo c mais nada vale para ti. Substância da soberba, ris de tudo o mais embuçado no teu desdém. Há uma tradição, que quando Deus fez o homem, veio Satan; achou a criatura adormecida, apalpou-lhe o corpo: achou-o perfeito, e deitou aí as paixões.

SATAN
Essa história é uma mentira. O que Satan pôs ai foi o orgulho. E o que são vossas virtudes humanas senão a encarnação do orgulho?

MACÁRIO

Oh! Ali vejo luzes ao longe. Uma montanha oculta no horizonte. Disséreis um pântano escuro cheio de fogos errantes. Porque paras o teu animal?

SATAN
Tenho uma casa aqui na entrada da cidade. Entrando à direita, defronte do cemitério. Um Sturn, meu pajem, lá está preparando a ceia. Levanta-te sobre meus ombros: não vês naquele palácio uma luz correr uma por uma as janelas? Sentiram a minha chegada.

MACÁRIO

Que ruínas são estas? É uma igreja esquecida? A lua se levanta ao longe nas montanhas. Sua luz horizontal banha o vale, e branqueia os pardieiros escuros do convento. Não mora ali ninguém? Eu tinha desejo de correr aquela solidão.

SATAN
É uma propensão singular a do homem pelas ruínas. Devia ser um frade bem sombrio, ébrio de sua crença profunda, o Jesuíta que aí lançou nas montanhas a semente dessa cidade. Seria o acaso quem lhe pôs no caminho, à entrada mesmo, um cemitério à esquerda e umas ruínas à direita?

A Caminho de São Paulo, 2ª cena de Macário, de Álvares de Azevedo.

Imagem: deolhonotempo.blogspot.com