terça-feira, 26 de abril de 2011

Frankenstein VII - Os trenós, o criador e a criatura

Frankenstein
Mary Shelley
L&PM, 2010

Carta 4
À Sra. Saville, Inglaterra
05 DE AGOSTO DE 17...

"Aconteceu-nos um acidente tão estranho que não posso deixar de registrá-lo, embora seja muito provável que você me veja antes que esse papel chegue às suas mãos". Pela maneira de começar essa última carta, parece que, finalmente, temos algo "estranho" numa história de fantasmas. Vamos aos fatos: na névoa densa o navio é preso pelos imensos blocos de gelo. A tripulação passa a noite à espera de que o tempo melhore. Quando melhora, eis o que se vê: "uma carruagem baixa, fixada a um trenó e puxada por cães, que passava na direção do Norte à distância de meia milha; uma criatura que tinha a forma de um homem, mas aparentemente de estatura gigantesca, estava sentada no trenó e conduzia os cães. Acompanhamos o progresso do viajante com nossas lunetas até que ele se perdeu entre os distantes acidentes do gelo".  Na manhã seguinte aparece um cidadão inglês, muito culto e muito debilitado, também num trenó, mas sem forças nem mesmo para contar sua história. Resiste até mesmo a receber a ajuda dos marinheiros. Depois de muita insistência, cede e aceita a ajuda oferecida. Depois de dois dias e com as forças recuperadas, resolve falar e talvez chegue até a contar o que estava fazendo ali. 13 de agosto: de 17... o homem fala sobre a embriaguez provocada pelo desejo de conhecimento e suplica para o sr. Walton não tenha também ele ingerido a mesma bebida, uma vez que está numa aventura tão distante de sua terra. Diz o desconhecido que, se contar a sua história, fará com que RW retire da boca o tal cálice. O estranho quis antes saber sobre a vida de Walton, a infância, essas coisas. Índices de retardamento no discurso. Diz ainda que perdeu tudo e não tem mais como recomeçar, diferentemente de Walton, que só tem 28 anos e muito tempo pela frente. Walton descreve o "divino vagabundo" como um ser superior em espírito a qualquer outro homem que já tenha conhecido antes. 19 de agosto de 17... Começa assim o relato deste dia "Ontem o desconhecido me disse: Capitão Walton, o senhor pode perceber facilmente que tenho sofrido grandes e extraordinárias desgraças. Eu tinha resolvido que a lembrança desses infortúnior morreria comigo, mas o senhor me obrigou a alterar essa decisão". Graças ao bom Deus e ao Cap. Walton, teremos uma narrativa, que, diga-se, já começou faz tempo, certo? Ficou assim combinado, na manhã seguinte o desconhecido conta sua história para Walton que, cuidadosamente  a anotará e depois, gentilmente no-la passará adiante, para a alegria de todos. Esperemos pelo Capítulo 1.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

"Jehová", de Lorca


Parece um céu de lata, de nuvens sonhadas, trono e trombetas. Jehová aparece solene e sem humor seguido por um anjo malajambrado. São bonecos de latas, porém espirram. O anjo lembra que São Miguel morreu constirpado. O anjo anuncia a presença das três anjas (meninas?) que dizem "comedme". O mundo está de um jeito que nem Deus nem os Médidos do Demônio podem socorrer. Jehová lamenta as anjas que imitam hombres e o anjo adverte sobre a impossibilidade de os anjos fovens, assim como os podrem, de olham para o alto (para poderem imitar coisas elevadas). Descalabro total: São Cristóvão luta boxe e São Jorge joga tênis. Jehová tem uma crise de tosse. Delira com lembranças do velho testamento: monte Sinai e Horeb. A explicação do anjo: aqueles tempos eram bons porque os homens ainda não inventado os jogos. Jehová lembra o mistério do fogo (Prometeu). Jehová reconhece com pesar a supremacia do homem e suas invenções: o futebol, telégrafo sem fio, aspirina... O remédio que o anjo acabou de lhe ministrar cessou por completo seu estado de tosse. O anjo ainda lembra das camisetas... Dos merengues... Jehová simplesmente enlouquece ao ouver a palavras e passa repetí-la como crianças pequena e descontrolada: "Ah, Merengues, merengues! Eu quero! Merengues!... É servido de merengues e ao anjo diz fará o doce nos céus, imitandomos homens. Jehová está manco por causa de um choque elétrico que sofreu. Cena de pastelão lança o prato com os merenques na cara de Jehová, que pede ao anjo que quando for fazer aquilo no céu que evite situações como essa. o anjo diz cinicamente que Jeohová pode tudo, mas Jehová em preocupações imbecis. Sentencia: as essências da vida e da morte estão guardados em armários escuros. Homens aparecem para gritar que Jehová não existe. Como se fosse uma praça de guerra. Som de trombetas. Jehová está ameaçador: é a hora da vingana. Indicação cênica enigmática: "(Vienem las categorías. Son de cartón, con los ojos iluminados por detrás; se muevem por bilitos que manejan personas invisibles)". Jehová: "Vou a asessinar a toda humanidad". Um Santo Martir Andaluz diz "olé!". Jehová: "Hoy los aniquilo!!". O anjo, acho que querendo se parecer sensato, pede calma ao Senhor e sugere que ele se consulte com Satán. Todos concordam com a sugestão. Jehová acede e manda chamar Satán. Jehová se sente incomodado com um ornamento que não quer tirar por significar a divindade. Enquanto espera por Satanás pretende dormir um pouco no trono e pede um livro para ajudá-lo pegar no sono: "No hay mejor adormirdera que esos ejércitos de renglones". Jehová recusa ler Kant por não entendê-lo. Jehová pede que tenham muito cuidado com seu filho, o Cristo: "Um louco assim pode nos causar muito desgosto quando menos esperamos". O trecho se encerra com grotesco "ensaio de crítica literária e religiosa". Muito divertido me pareceu, além de vanguardista.
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Em seguida, transcrevo trecho de "El Primer Lorca y su teatro inédito de juventud", de SANTIAGO TRANCÓN, do I. E. S. Calderón de la Barca (Madrid):

Jehová (1920)
Esta obra es la más claramente vanguardista de cuantas hasta ahora hemos comentado. Ya nos encontramos en los años 20. Lorca ha pasado por la Residencia de estudiantes y está claro que conoce la existencia y los intentos del dadaísmo, el futurismo y el creacionismo. Aquí no hay duda de que nos encontramos con influencias directas.
Recordemos que en noviembre de 1919 se traslada a Madrid, a la Residencia de Estudiantes, y allí conoce enseguida, entre otros, a Luis Buñuel, Pepín Bello, José Moreno Villa y Emilio Prados, poetas y artistas de grandes dotes e inquietudes artísticas. Por entonces también conoce personalmente a Juan Ramón Jiménez, Manuel de Falla y Gregorio Martínez Sierra, que dirigía el teatro más innovador de Madrid, el Eslava, en el que Lorca estrenaría, con rotundo fracaso, su obra más vanguardista del momento, El maleficio de la mariposa.
Ya en la primera acotación encontramos:
En el centro dos escabeles medievales y un sillón moderno (de una fábrica valenciana). Al fondo un árbol de madera con manzanas de lata. Habrá una serpiente de gasa verde. (Es muy
conveniente la instalación eléctrica para producir efectos de apoteosis).
La fascinación por los nuevos inventos y adelantos técnicos está presente en toda la obra, si bien el humor con que todo está tratado hace que debamos relativizar un poco cualquier canto o alabanza del progreso al estilo futurista. El tono general es irreverente y provocador, actitudes ya claramente vanguardistas: «Johová aparece solemne y malhumorado. Le sigue un angelote con la cara despintada y las alas pegadas con sindetikón…». (Debe aludir a la marca de un pegamento «revolucionario» de la época).
Por momentos la obra nos recuerda al Ubú Rey de Alfred Jarry:
JEHOVÁ (Estornudando).- ¡Aaaachísss!
ÁNGEL: ¿Le ha sentado mal la ducha?
JEHOVÁ: Hoy el agua estaba muy fría.
Más adelante reprocha JEHOVÁ al ÁNGEL: «...nunca debieron romper las antiguas costumbres… Tú mismo... ¿Por qué llevas bigotes? ¿Quién te manda llevar peluquín?...»
(El peluquín fue un invento muy llamativo de la época).
JEHOVÁ «hace gimnasia» como le ha recomendado LA SERPIENTE. SANTO TOMÁS se ha encargado «un sombrero de copa» y JEHOVÁ replica. «¡Qué atrevimiento! ¡Eso es hasta antihigiénico!». El ÁNGEL le anuncia más cambios revolucionarios: «Además San Cristóbal boxea y San Jorge juega al tennis». JEHOVÁ añora  «los buenos tiempos del Sinaí» y el ÁNGEL le recuerda que «entonces, Señor, los hombres no habían inventado las cerillas». «¡Ay roto misterio del fuego!», exclama DIOS, que también se lamenta de que «con Venus juegan al foot-ball los ángeles atletas». Luego se habla de «las camisetas de punto», «la telegrafía sin hilos», «la aspirina», etc. El CORO DE HOMBRES le grita a JEHOVÁ: «¡No existes! ¡No existes!». JEHOVÁ llega a decir de su hijo Jesucristo: «Ten mucho cuidado con él: un loco así nos puede dar un disgusto el día menos pensado...» Los poetas no se salvan del sarcasmo. JEHOVÁ pregunta al ÁNGEL si ha «echado alpiste a los poetas». El ÁNGEL le dice que incluso «lechuga». La obra acaba entonces: Dios se tumba a dormir y de lo único que se lamenta es del ruido de las moscas.

Frankenstein VI - Os fios


Frankenstein
Mary Shelley
L&PM, 2010

Carta 3
À Sra. Saville, Inglaterra
17 DE JULHO DE 17...

Esta carta que aparentemente não serve para nada além de repetir as mesmas queixas e pedidos feitos nas anteriores, pela primeira vez dá indício da história que se vai contar, mas faz isso pelo negativo: trata-se de uma carta curta, bem menor que as outras e diz de significante apenas isto: não aconteceu nada excepcional. Estranho escrever uma carta para se dizer isso. É presumido que ao escrever tenha-se algo a dizer. Evidente que, se ainda não há, em breve se terá. Aguardemos a próxima e última carta. Os fios parece estarem próximos a se ligar. Eu traduziria esta Carta 3 assim: "Senhoras e Senhores, hoje tem espetáculo!".

domingo, 24 de abril de 2011

Missa das onze e meia

Domingo, 24 de abril de 2011, como combinado
 "Esforçai-vos por alcançar as coisas do alto (...); aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres". Carta de São Paulo aos Colossenses (3,1-2).

Descuidado e num segundo de desproteção, deixei que a Ministra me servisse o pão com as bordas molhadas no "sangue", cujo gosto ainda sinto.  

Física - O Espaço 1


A Experiência do espaço na física contemporânea
Gaston Bachelard
Editora Contraponto, 2010

Capítulo 1 - Realismo e localização
Para o físico realista "a base do conhecimento do real é o quadro espacial, e a localização é a única raiz verdadeira da substancialização". Realismo ingênuo que, segundo Bachelard, deve ser superado pelo aperfeiçoamento da localização, passando, assim, "do realismo ingênuo para o realismo esclarecido". "O que mais chama a atenção é a rapidez com que o Realista recorre às experiências propriamente geométricas. Pressione-o um pouco. Argumente que conhecemos pouco desse real que ele pretende tomar como um dado. O Realista concordará, mas com a pronta resposta: 'Pouco importa que não saibamos o que é o objeto; mesmo assim sabemos que o objeto existe, pois ele está ali; você e eu sempre podemos encontrá-lo em uma dada região do espaço'. O lugar aparece portanto como a primeira das qualidades existenciais, a qualidade pela qual todo estudo deve começar, na qual também todo estudo deve terminar para ter a garantia da experiência verdadeiramente positiva. Será possível falar de uma realidade que está em toda parte? Equivale a afirmar que ela não está em parte alguma. De fato, o espaço é o meio mais seguro de nossas diferenciações, e o Realista, pelo menos quando polemiza, sempre se baseia na designação de objetos espacialmente diferenciados. Quando o Realista garante a raiz geométrica de sua experiência da localização, ele concorda facilmente com a característica não objetiva das qualidades sensoriais e até das qualidades mais diretamente relacionadas com a geometria da localização". (...) O Realista aceitará que o objeto "seja deformável, compressível, poroso, vago. Mas, ao menos, nem que seja por um único ponto, o objeto será retirado na existência geométrica. Essa espécie de centro de gravidade ontonlógico se apresentará como a raiz da experiência topológica. Chega-se a um cartesianismo pontual e já não figurado. Esse cartesianismo de centros nitidamente designados, embora distribuídos em um espaço homogêneo mal explorado, será a fonte de certezas maiores". (...) "Para a metafísica realista, um objeto particular é, antes de tudo, um ponto singular do espaço. Em torno desse ponto podem se manifestar fenômenos muito diversos; essas diversidades podem circunscrever mais ou menos o objeto: pertencerão porém a um mesmo objeto desde que tenham o mesmo centro de localização. Quem for ao fundo da certeza realista verá que o recorte que deu origem às apuradas observações psicológicas e metafísicas de Bergson e de Le Roy é feito necessariamente em torno de um centro de objetividade. O realismo nunca se contenta - como deveria fazer, ao que parece - com uma realidade fechada que realizaria na periferia dos objetos as sensações pelas quais os conhecemos". Para os Realistas, "É o centro que protege a unidade; o centro é o elemento da aritmética do real; o centro sustenta o sujeto de todas as frases predicativas nas quais expomos as qualidades do real". (...) "Se a localização pontual é tão clara, tão sólida e, por assim dizer, tão lógica, é explicável que o Realismo tenha considerado tão facilmente que estava de acordo com as doutrinas da Relatividade. O Realista não pretendia salvar as formas extensas de seus objetos reais. Bastava-lhe estar seguro de manter os centros reais de localização. Nas doutrinas relativistas, jogava-se afinal com o exterior do real; parece que se deixava ao Realista a substância interior do real. Eram modificadas as relações geométricas dos objetos; não eram modificados o seu número, a sua unidade, a sua existência absoluta, ficando entendido que a existência absoluta dos objetos é sua existência espacial pontual. O Realista aceitava, portanto, todos os paradoxos das figuras diminuídas, dos coeficientes de contração, das mudanças de escala. Limitava-se a reaplicar, ponto por ponto, coisa por coisa, o mundo matemático retificado pelo mundo intuitivo. O Realista renunciava espontaneamente a seus métodos de localização; nem por isso renunciava a seus centros de localização, descumprindo assim a prescrição primeira de toda sã filosofia: o dever de definir o objeto pelos métodos experimentais que nos oferecem as características desse objeto". "Diante das novas doutrinas quânticas, o Realista ainda julga possível fundamentar suas certezas sobre os mesmos centros. (...) Pretende compreender a física quântica sem  reformular sua própria experiência, nem seus princípios, nem sua metafísica. Embora o micro-objeto, considerado estatisticamente, tenha efeitos locais muito mal determinados, o Realista deseja que eses efeitos tenham mesmo assim uma causa local bem determinada. Ele não deseja tomar o tremor, a ondulação como todos, como sínteses coisa-movimento. Quer analisar intuitivamente esses elementos complexos que não são analisáveis experimentalmente e postula o ponto material como dotado de localização exata. (...) "Parece claro que o princípio topológico do realismo espacial só coloca em jogo uma simples e pobre relação: a relação de continente e conteúdo. De fato, já que as figuras dos objetos são apenas aspectos mais ou menos contingentes, já que a verdadeira ou pelo menos a mais forte raiz da certeza realista provém da localização segura de um objeto em uma região especificada do espaço, deve-se definir a pesquisa do real como um envolvimento progressivo; será preciso provar a certeza do realismo fixando um invólucro dentro do qual se encontrará com certeza o objeto designado: 'Meu cofre está em meu escritório; minha pasta está em meu cofre; logo, minha pasta está em meu escritório'. Estou tão seguro desse silogismo da localização quanto do silogismo da implicação. Não é sem razão que a lógica formal foi baseada nesse encadeamento de bens. Um especulador pode tentar provar que o conteúdo de minha pasta é solidário de convenções sociais - isto é, de ideias mais ou menos teóricas -, que essas convenções extrínsecas são os únicos motivos da minha fortuna, que o mundo financeiro é um complexo de leis financeiras, que uma obrigação financeira só oferece um bem real quando é realizada e que ela se realiza fora do cofre, no banco, na Bolsa, no templo dos fiduciários... O Realista sorri ao ouvir tantos paradoxos. Sem se abalar com a facilidade com que se acrescentaram temas teoréticos aos real, responde: 'A única base objetiva, real, segura, de sua ideia a respeito da realidade financeira é que suas ações estão no cofre e que o cofre está em seu escritório. Nele é que ladrões ou herdeiros poderão encontrá-las. Os motivos subjetivos para localizar um objeto podem ser bem diversos; mesmo assim, a localização se baseará unicamente na convergência dos sucessivos encadeamentos. É uma operação nitidamente centrípeda, metodicamente dirigida a um centro. Multiplicar os invólucros em torno de uma realidade é multiplicar as garantias de sua posse, é impedir as emanações, as perdas sutis. É fixá-la solidamente no espaço. Circunscrever o real equivale a estabilizá-lo'. "Eis, a nosso ver, a prova mais simples e mais forte do realismo. Se essa prova falhar, o realismo estará comprometido. Será preciso abandoná-lo ou, no mínimo, modificá-lo completamente. Ou seja, mais vale que mude de nome. É essa prova que vamos discutir agora".

Imagem: Google images (educacao.uol.com.br).

sábado, 23 de abril de 2011

Cultura na prática


Igreja de Nosso Senhor do Bonfim na Colina Sagrada

"Seguindo as observações de Ricoeur sobre a linguagem, percebemos imediatamente que a cultura-tal-como-vivida tem um tipo de existência fenomênica diferente da cultura-tal-como-constituída. O Signo desfruta de uma existência atual, in praesentia, apenas na medida em que se inscreve na ação humana. Como esquema de relações entre categorias simbólicas, o 'sistema' é meramente virtual. Existe in absentia, do modo como a língua inglesa, sendo distinta dos enunciados efetivos das pessoas, existe perfeitamente, ou como um todo, tão-somente na comunidade em geral. Podemos dizer que, tal como vivido, o fato simbólico é um 'indício' fenomênico cujo 'tipo' é seu modo de existência na cultura-tal-como-constituída. Além disso, na cultura-tal-como-constituída, o signo tem um sentido abstrato, significando meramente, em virtude de todas as relações possíveis com outros signos, todos os seus usos possíveis; sendo assim, ele é 'independente de estímulo', não estando preso a nenhum referente específico do mundo, mas as pessoas vivem no mundo além de viverem por signos, ou melhor, vivem no mundo por meio de signos e, na ação, relacionam o sentido conceitual aos objetos de sua existência. Na experiência humana ingênua e evidentemente universal, os signos são nomes de coisas 'lá fora'. O que estou tentando dizer, de um modo muito rebuscado, foi mais bem formulado por um índio que narrava suas experiências com o governo canadense em Otawa.: "'o índio comum nunca consegue ver o 'o governo'. É mandado de uma repartição para outra, e apresentado a essa ou àquela pessoa, que às vezes diz ser o 'chefe'; mas nunca vê o governo real, que se mantém escondido'" M. Sahlins, Cultura na prática, p.311.

Frankenstein V - Carta 2

Frankenstein
Mary Shelley
L&PM, 2010

Carta 2
À Sra. Saville, Inglaterra
ARCÂNGEL, 28 DE MARÇO DE 17...

Talvez a primeira coisa a reparar é que esse moço, até agora segurando o fio da narrativa, não consegue planejar nada direito. Chegou, sim, a Arcângel, mas com três meses de atraso em relação a suas próprias previsões, feitas na Carta 1. Nesta Carta 2 o tom é de pura lamentação e descontrole emocional. Novamente menciona o descaso com sua educação na infância e adolescência, mas se julga culto, diferente dos homens brutos que encontra pelo caminho. Acha-se afetado pela criação feminil que lhe deu a irmã. Queixa-se da falta de um amigo. Dramático, pede que a irmã se lembre dele com afeto se nunca mais voltar. Carente, implora que ela não deixe de lhe escrever. Tem 28 anos. Não informa qual é o seu "empreendimento". Espera a primavera para poder navegar e, enquanto isso, vai constituindo sua tripulação.

Imagem: Google images (confrariadecinema.com.br).

O Mito de Prometeu

Prometeu: mito dominante em Frankenstein

O Céu e Terra já estavam criados. A parte ígnea, mais leve, tinha-se espalhado e formado o firmamento. O ar colocou-se de seguida. A terra, como era mais pesada, ficou por baixo e a água ocupou o ponto inferior, fazendo flutuar a terra. Neste mundo assim criado, habitavam as plantas e os animais. Mas faltava a criatura na qual pudesse habitar o espírito divino.
Foi então que chegou à terra o Titã Prometeu, descendente da antiga raça de deuses destronada por Zeus. O gigante sabia que na terra estava adormecida a semente dos céus. Por isso apanhou um bocado de argila e molhou-a com um pouco de água de um rio. Com essa matéria fez o homem, à semelhança dos deuses, para que fosse o senhor da terra. Tirou das almas dos animais características boas e más, animando assim a sua criatura. E Atena, deusa da sabedoria, admirou a criação do filho dos Titãs e insuflou naquela imagem de argila o espírito com o sopro divino.
Foi assim que surgiram os primeiros seres humanos, que logo povoaram a terra. Mas faltavam-lhes conhecimentos sobre os assuntos da terra e do céu. Vagueavam sem saber a arte da construção, da agricultura, da filosofia. Não sabiam caçar ou pescar - e nada sabiam sobre a sua origem divina.
Prometeu aproximou-se e ensinou às suas criaturas todos esses segredos. Inventou o arado para o homem poder plantar, a cunhagem das moedas para que houvesse o comércio, a escrita e a extracção do minério. Ensinou-lhes a arte da profecia e da astronomia, enfim todas as artes necessárias ao desenvolvimento da humanidade.
No entanto faltava-lhes ainda um último dom para se puderem manter vivos - o fogo. Este dom, entretanto, havia sido negado à humanidade pelo grande Zeus. Porém, Prometeu apanhou um caule do nártex, aproximou-se da carruagem de Febo (o Sol) e incendiou o caule. Com esta tocha, Prometeu entregou o fogo para a humanidade, o que lhe dava a possibilidade de dominar o mundo e os seus habitantes.
Zeus, porém, irritou-se ao ver que o homem possuíra o fogo e que a sua vontade tinha sido contrariada. Por isso tramou no Olimpo a sua vingança. Mandou que Hefesto fizesse uma estátua de uma linda donzela, a que chamou Pandora - "a que possui todos os dons",(uma vez que cada um dos deuses deu à donzela um dom). Afrodite deu-lhe a beleza, Hermes o dom da fala, Apólo, a música. Vários outros encantos foram consedidos à criatura pelos deuses.
Zeus pediu ainda que cada imortal reservasse um malefício para a humanidade. Esses presentes maléficos foram guardados numa caixa, que a donzela levava nas mãos. Pandora, então, desceu à terra, conduzida por Hermes, e aproximou-se de Epimeteu - "o que pensa depois", o irmão de Prometeu - "aquele que pensa antes" e diante dele abriu a tampa do presente de Zeus. Foi então que a humanidade, que até aquele momento havia habitado num mundo sem doenças ou sofrimentos, se viu assaltada por inúmeros malefícios. Pandora tornou a fechar a caixa rapidamente, antes que o único benefício que havia na caixa escapasse - a esperança.
Zeus dirigiu então a sua fúria contra o próprio Prometeu, mandando que Hefesto e seus serviçais Crato e Bia (o poder e a violência) acorrentassem o Titã a um penhasco do monte Cáucaso. Mandou ainda uma águia devorar diariamente o fígado de Prometeu que, por ser ele um Titã, se regenerava. O seu sofrimento durou por inúmeras eras, até que Hércules passou por ele e viu o seu sofrimento. Abateu a gigantesca águia com uma flecha certeira e libertou o cativo das suas correntes. Entretanto, para que a vontade de Zeus fosse cumprida, o gigante passou a usar um anel com uma pedra retirada do monte. Assim, Zeus sempre poderia afirmar que Prometeu se mantinha preso ao Cáucaso.

Imagem: Prometeu preso no Cáucaso (colunistas.ig.com.br)
Texto: www.opombo@fc.ul.pt

Frankenstein IV - Carta 1


Frankenstein
Mary Shelley
L&PM, 2010

Carta 1
À Sra. Saville, Inglaterra
SÃO PETERSBURGO, 11 DE DEZEMBRO DE 17...


Quem assina essa primeira de uma série de quatro cartas é  R. Walton, que se destina (de São Petersburgo, na Rússia) a sua irmã Margaret (na Inglaterra) . Trata-se aparentemente de um aventureiro envolvido numa expedição ao pólo norte, em busca de uma grande descoberta que poderá lhe proporcionar fama, pois que dinheiro não lhe falta. Fala de sua boa saúde e da alegria de estar fazendo o que gosta. Reclama de sua educação, que teria sido negligenciada pela família. Mesmo assim teve acesso aos poetas e tornou-se ele próprio um deles. Sonhou habitar o mesmo templo que Homero e Shakespeare (de novo esses dois; faltou Milton), mas o fracasso foi total e o fez retornar suas aspirações primeiras, de aventuras. Todas as cartas são de Walton, em que pese ele as assinar cada vez de uma maneira: R. Walton (primeira), Robert Walton (segunda), R. W. (terceira). A quarta carta está sem assinatura. Esse narrador estaria se despedindo?

Imagem: Google images (frank1b.blogspot.com)

Frankenstein III - Prefácio

Mary Shelley

Frankenstein
Mary Shelley
L&PM, 2010

Prefácio

Agora me aparece um Prefácio. Lembremos que na tal "Introdução da Autora", ela mesma menciona que não há nada no livro que tenha vindo de seu marido, o poeta Percy Shelley, a não ser, vejam só, o prefácio, que, segundo se lembra teria sido totalmente escrito por ele. Esse aqui, não. Está assinado pela própria autora e tem também lugar e data: Marlow, setembro de 1817. O presente prefácio repete algumas informações que haviam aparecido na introdução e faz considerações acerca de procedimentos de criação literária, como inovações nas combinações dos procedimentos usuais, e sobre a ordem narrativa e a ordem da vida humana. Cita Homero, Shakespeare e Milton, quase que como companheiros de aventuras.

Imagem: Google images (discoverybrasil.com).

Frankenstein II- Introdução da Autora


Frankenstein
Mary Shelley
L&PM, 2010

Introdução da Autora

Texto assinado pela própria Mary Shelley, segundo ela, a pedido dos seus editores, que queriam uma apresentação sobre como teria surgido a história. Ela faz isso com a mais absoluta certeza de que dificilmente a poderiam acusá-la de intrusão pessoal. Conta aí sua estada, no verão de 1816, na Suíça, como vizinha de Lord Byron e que, da ideia de participação numa espécie de concurso sobre história de fantasmas surgiu o texto. Esta "Introdução da Autora" tem local e data: Londres, 15 de outubro de 1831. Interessante observar que isso se fez 13 anos após os originais serem publicados, curiosamente sem a assinatura de Mary Shelley. Esqueçamos isso. Essa "Introdução" é pra ser esquecida. Será? Claro que não.

Imagem: Google images (williamtunderwood.com).

Frankenstein I - Epígrafe


Frankenstein
Mary Shelley
L&PM, 2010

Pedi eu, ó meu criador, que do barro
Me fizesses homem? Pedi para que
Me arrancasses das trevas?

(O Paraíso Perdido, X, 743-45)

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Mariana Pineda V - Terceira estampa

Mariana Pineda
(romance popular em três estampas)
Federico Garcia Lorca, 1925

  TERCEIRA ESTAMPA

"Convento de Santa Maria Egipcíaca, de Granada. Traços árabes. Arcos, ciprestes, chafarizes e murtas. Há alguns bancos e velhas cadeiras de couro. Ao levantar-se o pano o palco está vazio. Soam o órgão e as longínquas vozes das monjas. Pelo fundo vêm correndo nas pontas dos pés e olhando para todos os lados, a fim de não serem vistas, duas Noviças. Vestem touquinhas brancas e trajes azuis. Aproximam-se em segredo de uma porta à esquerda e olham pelo burado da fechadura". 

Cena 1
O que as Noviças vêem é Mariana, presa e rezando. Comentam que ela está presa porque bordou uma bandeira e porque não gosta do rei. Todas, inclusive Carmen, a Superiora, a julgam inocente.

Cena 2
Mariana aparece e pede a Carmen se não poderia ficar ali no convento para sempre. Antes da resposta, diz que isso não poderia se dar porque já está morta. Diz ainda Mariana que espera o perdão de Deus (o que é garantido pela Monja), que compreende que estava cega (de amor), e, perguntada, confirma sua presença na novena, como faz todas as tardes.

Cena 3
Alegrito, o jardineiro do convento, a pedido de Mariana foi à casa de Dom Luís para saber notícias sobre a sua situação. Alegrito pede paciência para ouvir o que ele tem a dizer: que é impossível pretender salvá-la; que nem tentarão porque todos morreriam; mesmo assim fariam o que pudesse ser feito. Mariana interpreta a seu modo: "E frão tudo! Estou certa! São pessoas de nobreza e eu sou nobre. Olha, Alegrito, não vês como estou serena?" Pelo jeito, continua cega, malgrado tenha dito o contrário minutos antes. Pressionado por Mariana, Alegrito dá também notícias de Dom Pedro: "O cavaleiro dom Pedro de Sotomayor vai embora da Espanha, segundo dizem. Dizem que vai pra Inglaterra. Dom Luís soube que isto é certo". O delírio de Mariana começa a aparecer em suas palavras: " Dom Pedro virá a cavalo como louco quando saiba que me têm aprosionada por bordar sua bandeira. E, se me matam, virá para morrer a meu lado porque me disse uma noite ao beijar minha cabeça. Há de vir como um São Jorge de diamentes e água negra, ao vento a maravilhosa flor de uma capa vermelha. E porque modesto e nobre, para que ninguém o veja, virá pela madrugada, pela madrugada fresca, quando sobre o céu sombrio brilha o limoeiral apenas e a aurora finge nas ondas fragatas de somra e seda. Tu que sabes? Que alegria! Não tenho medo, compreendes?". Mariana ainda pede a Alegrito que volte a Dom Luís para dizer que ela está satisfeita por saber que virão todos para salvá-la, no momento oportuno.

Cena 4
Mariana sozinha, indo em direção ao horto: "À beira d`água, à beira, sem que a visse ninguém, morreu minha esperança. À beira d`água, à beira, sem que a visse ninguém, morreu minha esperança". Carmen se aproxima, trazendo com ela Pedrosa. Será sua última tentativa.

Cena 5
O delírio de Mariana aparece claramente. Diz que não poderá ser morta, porque tem amigos, porque toda Granada teria que morrer, porque é nobre, porque é filha de um Capitão, porque tem o percoço curto, belo e branco para ser justiçada, porque alguém virá salvá-la. Pedrosa diz que não quer vê-la morta e quer salvá-la, basta que, para isso dê os nomes dos conspiradores. Diz ainda que o tempo se esgotou: até o final do dia a virão buscar para garrotear, mas isso pode ser evitado se, dando os nomes, consiga o indulto do rei. Bravamente, Mariana declara que não falará. Pedrosa sai.

Cena 6
Mariana, sozinha, se lembra de uma canção antiga e pede ajuda a Pedro, chorando. Soror Carmen pede a ela que descanse.

Cena 7
Duas noviças conversam sobre Mariana, que espera um noivo que tarda. Mariana está em "divina atitude de trânsito". Encontro com as noviças, que afirmam que todos alí gostam dela. Aproxima-se Carmen, anunciando a presença de um senhor, com permissão do juiz, para visitá-la. Mariana ordena: "Que venha! Por fim, meu Deus!"

Cena 8
"Senta-se no banco, em atitude amorosa, voltada para o lugar onde têm que entrar. Aparece Madre Carmen. E Mariana, não podendo resistir, volta-se. No silêncio do palco, entra Fernando, pálido. Mariana fica estupefata". Mariana, triste, pergunta a Fernando por Pedro, pede (delirante) para que o deixem entrar, porque, segundo ela, Pedro "está lá embaixo, à porta!". Acha que Fernando veio com Pedro, que Pedro o trouxe. Dura e comovente conversa entre Fernando e Mariana. Fernando diz que todos os seus  amigos a traíram e fugiram e morrerá sozinha muito em breve e pede a Mariana que diga os nomes, pelos filhos dela e por ele, que oferece a própria vida. A resposta de Mariana: "Não quero que meus filhos me desprezem! Meus filhos hão de ter um nome claro como a lua cheia!  Meus filhos hão de levar um resplendor no rosto, que nem anos nem ventos poderão apagar! E se eu delatase, pelas ruas de Granada este meu nome seria dito com temor". Fernando ainda insiste, mas Mariana está enlouquecida e delirante, se dizendo já morta. Sai Fernando. Soror Carmen aparece para dizer que já sobrem as escadas para buscá-la.

Cena última
"Entram pela porta do fundo todas as Monjas. Têm a tristeza refletida nos rostos. As Noviças 1ª e 2ª estão em primeiro plano. Soror Carmen, digna e trespassada de pena, está perto de Mariana. Todo o palco irá adquirindo uma grande luz estranhíssima de crepúsculo granadino. Luz rosa e verde entre pelos arcos, e os ciprestes se matizam requintadamente, até parecerem pedras preciosas. Do teto desce uma suave luz laranja, que se vai intensificando até o final". Mariana se empenha em manter o coração, já despedaçado, sem desmaiar: "No entanto, que bem entendo o que diz esta luz! Amor, amor, amor, e um sem de saudades!". Entra o Juiz e, respeitoso, diz que há um carro à porta, que os espera. Mariana se despede, agradecida às Monjas e pede que não se esqueçam de seus filhos. Mariana: "Sei agora o que dizem o rouxinol e a árvore. O homem é um prisioneiro e não pode libertar-se. Liberdade do alto! Liberdade verdadeira, acende para mim tuas estrelas distantes! Adeus! Secai o pranto!". Ao Juiz: "Vamos logo!". Os sinos dobram ao longe e as Monjas se ajoelham. Carmen: "Mariana, Marianita, que belo e triste nome, que as crianças pelas ruas lementem tua dor". Mariana, saindo; "Eu sou a Liberdade porque assim quis o amor! Pedro! A Liberdade pela qual tu me deixaste. Eu sou a Liberdade, ferida pelos homens! Amor, amor, amor, e um sem fim de saudades!"
"(Um tocar de sinos, vivo e solene, invade o palco, e um coro de meninos começa, longínquo, o romance. Mariana se vai, saindo lentamente, apoiada em Soror Carmen. Todas as outras Monjas estão ajoelhadas. Uma luz maravilhosa e delirante invade o palco. Ao fundo os Meninos cantam.)"

"Oh, que dia tão triste em Granada
Que até às pedras fazia chorar
Ao ver a Marianita morrendo
Num cadafalso, por não delatar!

Pano lento
Imagem: Google images (planobrasil.com)

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Mariana Pineda IV - A Segunda estampa

Mariana Pineda
(romance popular em três estampas)
Federico Garcia Lorca, 1925

SEGUNDA ESTAMPA

"Sala principal na casa de Mariana. Tons cinzas, brancos e marfins, como numa antiga litografia, Grupo branco, estilo império. Ao fundo uma porta com cortina cinza, e porta laterais. Há um console com urna e grandes ramos de flores de seda. No centro da peça, um piano e um candelabro de cristal. É noite. Estão no palco La Clavela e os Filhos de Mariana. Vestem a deliciosa moda infantil da época. Clavela está sentada, e ladeando-a, em tamboretes, as crianças. A estância é limpa e modesta, embora conservando certos móveis de luxo herdados por Mariana".

Cena 1
Clavela conta histórias de ciganos para as crianças. As histórias contadas por Clavela se misturam à história de Mariana. Enquadramento ou encaixamento ou mise en abîme?

Cena 2
Mariana pede aos filhos que vão dormir, que Clavela os acompanhe e que rezem Salve-Rainhas e Credos. Sua filha diz que rezará a prece de São João e uma que pede por caminhantes e marinheiros. Mariana manda Clavela descer assim que os filhos dormirem.

Cena 3
Prece de Mariana à porta do quarto dos filhos: "Durmam sossegadamente, meus filhos, enquanto aqui, perdida e louca, sinto queimar-se em seu próprio lume vivo esta rosa de sangue de meu peito. A sonhar com o querosene e o jardim de Cartagena, luminoso e fresco, com o 'pássaro pinta' que se agita por entre as ramas do limoeiro verde! Que estou também adormecida, filhos, e vou revoando por meu próprio sonho como vão, sem saber aonde vão as perguntas mais tênues pelo vento".

Cena 4
Dona Angústias a movimentação naquela "velha e honrada casa" e avisa a Mariana que Dom Pedro está à porta. Ao sair correndo para recebê-lo, Dona Angústias pede calma e a alerta de que não se trata de receber um marido. Mariana diz que lhe dá razão mas não consegue se controlar.

Cena 5
"Mariana chega correndo à porta no momento em que Dom Pedro entre por ela. Dom Pedro tem trinta e seis anos. É um homem simpático, sereno e forte. Veste corretamente e fala de modo doce. Mariana lhe estende os braços e aperta-lhe as mãos. Dona Angústias adota um atitude reservada e triste. Pausa". Cena de muita rensão e angústia. Amor e liberdade dominam a conversa de Mariana e Dom Pedro, que agradece a Mariana e a Fernando o fato de poder estar ali a salvo e em sua companhia. Estão prontos pra lutar e morrerian pela liberdade. Chove e Mariana, num instante, pede silêncio.

Cena 6
Clavela avisa que batem à porta. . Aguardam os outros conspiradores. Mariana pergunta a Pedro se ele sabe quem virá e ele diz que sim. Bons companheiros, poucos, patriotas, pontuais e gente decidida.

Cena 7
Entram três outros conspiradores. Parece que fazem um análise de conjuntura e traçam planos para os próximos passos. A visão de todos é otimista quanto à adesão do povo à causa dos liberais. Mariana, porém, questiona, considerando o medo reinante na cidade, e pede a Pedro que vele por ela, que está prestes a sufocar. Ele não responde. Aguardam  uma  notícia de um quarto conspirador que está para chegar.

Cena 8
"Aparece pela porta o Conspirador 4º. É um homem forte: camponês rico.Veste o traje popular da época: sombreiro pontiagudo com abas largas de veludo, adornado com borlas de seda; jaqueta com bordados e aplicações de pano de todas as cores nos cotovelos, no canhão e no pescoço. A calça, presa por botões de filigrana, e as perneiras de couro, abertas de um lado, deixando ver a perna. Trai uma doce tristeza varonil. Todos os personagens estão de pé junto à porta da entrada. Mariana não esconde a angústia, e olha, ora o recém-chegado e ora Dom Pedro, com ar aflito e perscrutador". O Conspirador 4º traz más notícias: o levante terá que ser adiado porque não há disposição do povo em enfrentar o Governo e todos os conspiradores estão sendo caçados pela polícia. Será preciso esperar mais e guardar bem a bandeira, que a hora chegará. Mariana informa que mandou a bandeira para a casa de uma velha amiga, mas se mostra arrependida, achando que teria sido melhor deixá-la em sua própria casa. O Conspirador 4º continua a apresentar notícias ruins: muitas mortes de liberais em Málaga. Traições. Contudo, todos permanecem firmes no propósito de seguir lutando. Mariana faz promessa a Pedro: "Enquanto eu viver". Como não há mais o que decidir, resolvem beber, quando Clavela aparece para informar que Pedrosa está à porta de sua casa, acompanhado de dois homens. Na confusão que se instala, Mariana manda Pedro fugir e ele concorda imediatamente ("confuso"). O Conspirador 4º argumenta que "é indigno deixá-la" a sós com Pedrosa. Mariana insiste com Pedro: "Vai deoressa". O Conspirador 2º rebate: "Nós não devemos deixá-la abandonada". Pedro ("enérgico"): "É necessário! Como justificar nossa presença?" Todos saem, orientados por Clavela. Maria corre para o piano e começa a cantar uma canção.

Cena 9
"As cortinas do fundo se levantam e aparece Clavela, aterrorizada, com o candelabro de três velas numa das mãos, e a outra posta sobre o peito. Pedrosa é um tipo seco, de uma palidez intensa e de uma admirável serenidade. Dirá as frases com ironia muito velada, e olhará minuciosamente para todos os lados, mas com correção. É antipático. Há que fugir da caricatura. Ao entrar Pedrosa, Mariana deixa de tocar e se ergue do piano. Silêncio". Diálogo de agudíssima tensão entre Mariana e Pedrosa. Ambos sabem mais um sobre o outro que suas palavras revelam. A sequência me soou como uma luta de esgrima, inclusive por seu aspecto erótico (quando da procura pelo anél que caiu, Pedrosa chega a abraçar e beijar Mariana). Logo no início esta indicação cênica: "(Pausa. Nesta cena haverá pausas imperceptíveis e rotundos silêncios instantâneos, nos quais lutam desesperamente as almas dos personagens. Cena delicadíssima de se matizar, procurando não cair em exageros que prejudiquem a emoção. Nesta cena há que se notar muito mais o que não se diz do que o que está se falando. A chuva, discretamente imitada e sem ruído excessivo, chegará de quando em quando enchendo silêncios").  Ao final da cena o tom fica bastante pesado, com Mariana chamando Pedrosa de canalha, que a quer por a perder. Pedrosa diz que, ao contrário, quer salvá-la. e espera um chamado dela. Declara que sabe da bandeira e dos outros implicados na conspiração, mas que pode resolver tudo isso se Mariana ficar com ele: "Eu te quero minha, estás compreendendo? Minha ou morta". Ficam as dissimulações, as ameaças, as "ofertas" de amizade Pedrosa. Maria diz não temer nada, confessa ter bordado a bandeira, e o expulsa de casa, chamando-o covarde. Pedrosa prende Mariana. Mariana ainda tenta fugir mas se descobre realmente presa. "Agora começo a morrer". Dona Angústias avisa que a filha de Mariana chora, com medo da chuva e do vento.

Pano rápido

Imagem: Google images (pt.photaki.com)

Mariana Pineda III - A Primeira estampa

Antiga mesquita em Granada
Mariana Pineda
(romance popular em três estampas)
Federico Garcia Lorca, 1925

PRIMEIRA ESTAMPA

"Casa de Mariana. Paredes brancas. Ao fundo, balcõezinhos pintados de escuro. Sobre uma mesa, uma fruteira de cristal, cheia de marmelos. Todo o teto estará cheio desta fruta, pendurada. Em cima da cômoda, grandes ramos de rosas de seda, Tarde de outono. Ao levantar-se o pano, Dona Angústias, mão adotiva de Mariana, sentada, lendo. Está vestida de escuro. Tem um ar frio, mas é maternal ao mesmo tempo. Isabel la Clavela veste com bizarrice. Tem trinta e sete anos".

Cena 1
Diálogo de Dona Angústias com Clavela. Notícias de Mariana a bordar uma bandeira republicana, dos liberais. Borda com uma linha vermelha: "uma ferida de punhal sobre o ar". Falam de sua exposição por amor a Pedro, um conspirador. Parece que chegam amigas de Mariana, filhas do Ouvidor, Luzia e Amparo.

Cena 2
Conversa amistosa e alegre entre as amigas de Mariana, Dona Angústias e nem tanto com Isabel la Clavela.

Cena 3
"A porta se abre e aparece Mariana, vestida de lilás, com penteado de bucles, pente e uma grande rosa atrás da orelha. Não tem mais que um anel de brilhantes na mão esquerda. Aparece preocupada, e dá mostras, à medida que avança o diálogo, de vivíssima inguietude. Ao entrar Mariana no palco, as duas jovens correm ao encontro dela".
Conversa sem importância com as meninas. É revelado que Mariana tem 2 filhos pequenos. Dona Angústias sai para cuidar deles.

Cena 4
Perguntadas por Mariana. As irmãs falam do amor de seu irmão, Fernando, por Ela. Fernando teria dito que via nos olhos de Mariana "um constante desfile de pássaros". A conversa segue amena, em que pese a indicação cênica informar da inquietude de Mariana, que constantemente observa a porta e se distrai. Amparo faz bela exposição de uma tourada a que assistiu em Ronda. O tempo todo pensou em Mariana com ela, vendo a tourada. Mariana se emociona. As meninas saem.

Cena 5
"Mariana atravessa rapidamente o palco e olha as horas num desses grandes relógios dourados, onde sonha toda a poesia requintada da hora e do século. Vai até as vidraças e vê a última luz da tarde". Se as tardes fossem pássaros Mariana quereria lançar-lhes para lhes "fechar as asas". Está angustiada. Sobre aquela noite, canta: "Noite temida e sonhada;/que me feres já de longe/com longuíssimas espadas". Num susto, percebe Fernando, que chega. Parecia esperar outra(s) pessoa(s). Fernando tem 18 anos e está apaixonado por Mariana. Faz elogio à casa de Mariana: cheiro de marmelo, fachada com pinturas de barcos e grinaldas. Mariana o interrompe questionando sobre o movimento das ruas. Fernando responde que sim, mas Mariana insiste, querendo detalhes, e Fernando informa sobre ums grupos de homens envoltos em capas e comentavam a fuga de um certo capitão liberal que fugiu do cárcere., mas Fernando tem certeza de que Pedrosa o encontrará e o matará. Aumenta a angústia de Mariana e a luz vai deixando o palco. Pedrosa é caracterizado por Mariana e Fernando como uma desgraça, aterrorizador, velho atrevido, criminoso e dissimulado. Mariana diz que ela a tem visitado. Pedrosa estáa serviço do rei, para prender liberais em Granada e espreita a casa de Mariana. A casa já está na penumbra e Maria pede que Clavela proviencie luzes. Batem fortemente à porta.

Cena 6
Um homem num cavalo deixa uma carta e foge. Maria toma a carta avidamente, como se a esperasse ansiosamente. O seu estado de espírito não passa desapercebido de Fernando, que oferece ajuda, que não é aceita. Mariana alega problemas de família que ela mesma tem que resolver. Sai Fernando. Na carta, Pedro Sotomayor pede a Mariana algo que ela não pode fazer sozinha. Muita desesperada, chama de volta Fernando. 

Cena 7
Mariana, muito angustiada e constrangida, pergunta se pode confiar um favor a Fernando. Ela entende que é pedir demais mas ele diz que qualquer coisa faria por ela, mesmo algo perigoso. Mariana diz que o chamou porque tem medo de morrer sozinha naquela casa porque sua vida está lá fora. Mariana vislumbra Pedrosa a vigiá-la e entrega a carta a Fernando, porque já duvida poder continuar vivendo. A carta: "Adorada Marianita: Graças à roupa de capuchinho, que habilmente fizeste chegar a meu poder, fugi da torre de Santa Catarina, confundido com outros frades, que acabavam de assistir a um réu de morte. Esta noite, disfarçado de contrabandista, tenho absoluta necessidade de sair para Válor e Candiar, onde espero ter notícias dos amigos. Necessito antes das nove o passaporte que tens em teu poder e uma pessoa, de tua absoluta confiança, que espere com um cavalo, mais acima da represa do genil, para, rio adiante, me internar na serra. Pedrosa fechará o cerco como ele sabe, e se esta noite não parto, ficarei irremediavelmente perdido. Estou na casa do velho Dom Luiz, e que não o saiba ninguém de sua família. Não tentes me ver, pois me consta que está vigiada. Adeus, Mariana. Seja tudo por nossa divina mãe, a liberdade. Deus me salvará. Adeus, Mariana. Um abraço e a alma deste que te ama - Pedro Sotomayor". Cena pungente em que Fernando declara abertamente seu amor por Mariana e se vê na obrigação de ajudar seu adversário. Mariana decide ir ela mesma. Fernando não permite e diz que fará o trabalho. Mariana o entrega o documento e indica o lacal onde está o cavalo. Mariana pede cuidado prudência, que evite guarda ou soldado. Fernando não teme nada por ter o coração cativo. Pede enfim que Mariana não saia de casa.

Cena 8
Mal sai Fernando e Dona Angústias volta ao palco e, com ela, o doce perfume de marmelos. Dona Angústias informa sobre uma brancadeira dos filhos de Mariana: eles descobriram a bandeira escondida que bordava e, deitando-se sobre ela, figiam-se de mortos. Dona Angústias reclama da falta de homem naquela casa, mas pede que esqueça Dom Pedro. Maria diz que não pode. Dona Angústias pede ainda que Mariana pense em seus filhos. Mariana reconhece sua neglugência para com os filhos.

Imagem: Google images: plato.if.usp.br

terça-feira, 19 de abril de 2011

Mariana Pineda II - Prólogo


Mariana Pineda
(romance popular em três estampas)
Federico Garcia Lorca, 1925

Prólogo

Cenário representando o desaparecido arco árabe das Cucharas e perspectiva da praça Bibarrambla em Granada, enquadrando em margem amarelada, como velha estampa, iluminada de azul, verde, amarelo, rosa e celeste, sobre um fundo de paredes negras. Uma das casas estará pintada com motivos marinhos e guirlandas de frutas. Luar. Ao fundo, as meninas cantarão com acompanhamento o romance popular:

Oh, que dia tão triste em Granada
que até às pedras fazia chorar
ao ver a Marianita morrendo
num cadafalso, por não delatar!

Marianita sentada em seu quarto
Não parava de considerar:
"Se Pedrosa me visse bordando
a bandeira da Liberdade, ah!"

(Mais longe)
Oh, que dia triste em Granda,
nos seus sinos dobrar dobrar!

(De uma das janelas assoma uma MULHER com um candeeiro aceso. Cessa o coro)

MULHER
Meninas! Me ouves?

MENINA (De longe)
Já vou!

(Sob o arco aparece uma MENINA vestida segundo a moda do ano de 1850, que canta)

Como lírio cortaram o lírio,
como rosa cortaram a flor,
como lírio cortaram o lírio,
Mais formosa no de alma ficou.

(Lentamente, entra em casa. Ao fundo, o coro continua)

Oh, que dia triste em Granada
Que até às pedras fazia chorar!

Pano Lento

[Moldura noturna: Luar, enquadramento em margem amaleda, fundo de paredes negras. Encaixamento: esta cena incial é de vinte anos depois do sacrifício de Mariana, cuja história é já romance popular. O canto das meninas antecipa o fim de Mariana, que ao final morre encantada pelo delírio de permanecer viva, morrendo pela Liberdade e pelo Amor: "mais formosa no de alma ficou"]

Mariana Pineda I - Personagens


Mariana Pineda
(Romance popular em três estampas)
Federico Garcia Lorca, 1925

Personagens: Mariana Pineda, Dom Pedro Sotomayor, Fernando, Pedrosa, Isabel La Clavela, Dona Angústias, Jovens Monjas, Amparo, Luzia, Menino, Alegrito, Menina, Soror Carmen, Noviça 1ª, Noviça 2ª, Monja, Conspirador 1º, Cospirador 2º, Conspirador 3º, Conspirador 4º, Mulher do Candeeiro

A Estrutura da narrativa II - Bremond


Análise estrutural da narrativa
R. Barthes e outros
Editora Vozes, 1972

A lógica dos possíveis narrativos (p.110-135)
Claude Bremond

Dos setores: a) análise das técnicas e b) leis do universo narrado. Mas b pode: 1) respeitar constrições lógicas sob pena de ininteligibilidade e 2) respeitar as convenções de seu universo particular (cultura, época, gênero...). Para as transformações: primeiro) unidade de base é a função (aplicada às ações); segundo) a sequência elementar. Três funções agrupadas dão na sequência elementar, correspondentes a três fases de todo processo: a) uma função para abrir a possibilidade do processo; b) a ação e c) resultado; terceiro) nenhuma dessas funções necessita a que a segue na sequência. O narrador é livre para fazê-las passar à ação ou mantê-las na virtualidade. Ele pode atuaLizar a conduta sempre que desejar, mesmo estiver entre suas opções o resultado final da narrativa; quarto) as sequências elementares se combinam nas sequências complexas: a) encadeamento sucessivo (funções distintas num mesmo papel: malfeito a cometer>feito retribuído; b) o enclave (inclui no processo um outro: malfeito cometido=feito a retribuir>feito retribuído>dano infligido); c) o emparelhamento (duas sequências sob duas perpectivas: dano a infligir vs malfeito a cometer>dano infligido vs malfeito cometido = feito a retribuir). O Ciclo narrativo: "toda narrativa consiste em um discurso integrando uma sucessoão de acontecimentos de interesse humano na unidade de uma mesma ação". Categorias: processos de degradação (o erro; a obrigação; o sacrifício; a agressão sofrida; o castigo) e de melhoramento (realização da tarefa; intervenção do aliado; eliminação do adversário; negociação; retribuições (recompensa e vingança)): a) por junções sucessivas; b) por enclave e c) por emparelhamento. "Cada agente é seu próprio herói. Seus parceiros se qualificam na sua perspectiva como aliados, adversários, etc. Estas qualificações se invertem quando se passa de perspectiva para outra. Longe, pois, de construir a estrutura da narrativa em função de um ponto de vista privilegiado o do 'herói' ou do narrador - os modelos que elaboramos integram na unidade de um mesmo esquema a pluralidade das perspectivas próprias dos diversos agentes". (...) "Este enquadramento dos tipos narrativos é ao mesmo tempo um estruturação das condutas humanas agentes e pacientes. Elas fornecem ao narrador o modelo e a matéria de um devir organizado que lhe é indispensável e que seria incapaz de encontrar em outro lugar. Desejada ou temida, seu fim comanda um encadeamento de ações que se sucedem, se hierarquizam, se dicotomizam segundo uma ordem intangível. Quando o homem, na experiência real, combina um plano, explora na imaginação dos desenvolvimentos possíveis de uma situação, reflete sobre a marcha da ação empreendida, rememora as fases do acontecimento passado, ele narra para si mesmo as primeiras narrativas que poderíamos conceber. Inversamente, o narrador que quer ordenar a sucessão cronológica dos acontecimentos que relata, dar-lhes uma significação, não tem outro recurso a não ser ligá-los na unidade de uma conduta orientada em direção a um fim".

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O Sortilégio da mariposa IV - Segundo Ato


O Sortilégio da Mariposa
(Comédia em dois atos e um prólogo)

Federico García Lorca (1919)

Segundo Ato

Cena I
O Discurso do amor impossível

Final do dia; fim do do tempo dado pela Nigromântica para a meditação de Baratinho. A cena I aparece como um comentário. Duas Baratas, uma santa e outra, menos, conversam sobre a triste situação de Baratinho, que está diante da morte que decorre do amor diferente. Não importa que fosse a paixão de Baratinho por uma estrela, uma flor, uma borboleta; trata-se de uma impossibilidade: da tensão entre a paixão e a morte, entre Eros e Tanatos. Uma critica sua tendência à loucura de viver no fio da aranha, quase ou já mesmo loucura. A outra, a Santa, com comedimento, pede que se sinta o sofrimento do outro, que não se julgue. Trata-se de uma cena preparatória.

Cena II
Os Malditos poetas

Após os cuidados em casa de Dona Barata, a Mariposa é levada ao regato, ainda dormente, onde resta vigiada por Baratas Guardiãs, especialmente contra o perigo que representa Lacrauzito. A Barata Nigromântica pede calma à mãe e pede urgência em que Baratinho se case com Sílvia. Dona Barata tem maus pressentimentos e lança maldição sobre todos os poetas, declarando que, podendo, os queimaria todos. Nigromântica sentencia que o esquecimento os queimará.

Cena III
O Canto da Mariposa ao despertar

"Mariposa (Despertando): 'Voarei pelo fio de prata./Os meus filhos me esperam/lá nos campos distantes,/fiando em suas rocas./Eu sou o espírito/da seda./Venho de uma arca misteriosa/e vou para a névoa./Que cante a aranha/em sua cova;/que o rouxinol medite/minha lenda;/que a gota de chuva se assombre/ao resvalar-me sobre as asas mortas./Fiei meu coração sobre carne/para rezar nas trevas,/e deu-me a morte duas asas brancas,/mas a fonte cegou de minha seda./Compreendo agora o lamentar da água,/o lamentar das estrelas,/e o lamentar do vento na montanha,/e o zumbido pungente/da abelha./Porque sou a morte/e a beleza./O que sobre o prado diz a neve,/a fogueira o repete;/as canções do fumo na manhã/dizem-nas as raízes sob a terra./Voarei pelo fio de prata;/os meus filhos me esperam./Que cante a aranha/em sua cova;/que o rouxinoi medite/minha lenda;/que a gota de chuva se assombre/ao resvalar-me sobre as asas mortas'. (A Mariposa move as asas com lentidão)".

Cena IV
A Volta de Lacrauzito, sóbrio

Lacrauzito reaparece, não está bêbado mas é ameaçador como sempre. Muito inteligente, malicioso e provocador também. A Barata Guardiã o rechaça e ele vai até o limite, ou seja, muito bem perto da Mariposa, que não esboça nenhum temor, nenhuma reação. Por fim, com medo das outras Guardiãs, Lacrauzito se retira. Ainda aí provocador, chama a Guardiã de feia, louca e solterona.

Cena V
A Mariposa, as gotas de orvalho e os vagalumes

Três Vagalumes, procurando gotas de orvalho para se alimentar, encontram a Mariposa. "Mariposa: 'Escutei/como as claras gotas/falavam docemente/contando-se mistérios/de campos infinitos'. 3º Vagalume (Voltando-se bruscamente): 'Nunca falam as gotas;/nascem para alimento/de abelhas, vagalumes/o espírito não têm'. Mariposa: 'O grão de areia fala,/e as folhas todas têm/um caminho distinto;/porém todas as vozes,/e os cantos que escutares,/são disfarces estranhos/de um só canto. Um fio/me levará aos bosques/onde se vê a vida.' 3º Vagalume: 'És acaso uma fada?'. Mariposa: 'Eu não sei o que fui;/tirei meu coração/e a alma lentamente;/e meu pobre corpo agora/está morto e vazio'. 1º Vagalume: 'Pois goza o amor/que já vem a manhã./Bebe com alegria/as gotas de rocio'. Mariposa: 'Não sei o que é amor,/jamais o saberei'."

Cena VI
Baratinho volta à cena

Baratinho reaparece na presença da Mariposa, "pintado" de açucena, ou seja, vestido "graciosamente" de amarelo. "Baratinho (Declamatoriamente): 'As folhas e as flores/se murcharam./Eu mantinha o silêncio/da manhã. (...) Era o tempo ditoso de meus versos tranquilos,/mas uma fada à minha porta/chegou vestida de neve transparente/para tirar-me a alma./Que farei nestes prados sem amor e sem beijos?/Atirar-me-ei às águas?/Porém penso no mundo com que minha mãe sonha,/um mundo de alegria mais além dessas ramas,/repleto de rouxinóis e de prados imensos:/o mundo do rocio/onde o amor não se acaba./E se São Baratão não existisse? Que motivo/teria minha amargura fatal? Sobre as ramas/por nós outras não vale aquele que nos fizera/superiores a todo o criado?'" Uma Baratinha Camponesa o lastima, considerando-o definitivamente louco.

Cena VII
O Desespero

Baratinho se desespera, se declara e faz promessas, sem compreender o que se passa. A comunicação entre ele e a Mariposa é teatral ou inconsciente. Ele fala (canta); ela não responde mas dança. Ele questiona o silêncio e ela tenta voar. Ele ainda fala e a Mariposa cai no chão. Baratinho a abraça e, inconsciente, esta se deixa abraçar, mas em seguida se separa bruscamente e dança ao som das palavras de Baratinho: "Quem me pôs estes olhos que não quero/e estas mãos que tratam/de prender um amor que não entendo? E me põe fim à vida!/Quem me perde entre sombras? Quem me manda sofrer sem asas ter?"

O Sortilégio da mariposa III - Primeiro ato


O Sortilégio da Mariposa
(Comédia em dois atos e um prólogo)

Federico García Lorca (1919)

Primeiro Ato

Cena I
A Conversa entre Dona Barata e a Barata Nigromântica

É uma manhã rubra em um prado verde e humilde. Toda a primeira indicação cênica segue as orientações já indicadas no Prólogo: humildade, pequenez, invisibilidade, ingenuidade... Todo o lugar se apresenta "como um minúsculo e fantástico povoado de buracos". Impossível não pensar num universo em miniatura, aliás bastante coerente com as personagens em cena: representações de insetos. Dona Barata sai de sua "casa" para a limpeza do quintal e encontra a Barata Nigromântica, que, com grande abatimento de alma, revela um sonho que teve na noite anterior: era "uma flor na relva afundada". Disse ainda que na tarde anterior, recebera de uma andorinha a informação de que "todas as estrelas irão se apagar". Disseram-lhe ainda as cigarras que uma fada havia morrido. Questionada por Dona Barata, a Nigromântica respondeu que quem matou teria matada foi o amor. Rompe-se essa assunto para introduzir outro: o filho de Dona Barata, que ambas acham triste nos últimos dias. Dona Barata revela que ele está enamorado. Despedem-se se criticando: a outra, a vida prática de uma; uma, a poesia da outra. A Nigromântica se vai, deixando a Dona Barata varrendo e cantando misteriosos versos em redondilhas.

Cena II
A Conversa de Dona Barata com a Baratinha Sílvia
Entre em cena a Baratinha Sílvia, apaixonada pelo filho de Dona Barata e reclamando sua sorte, por saber não tocar o coração do amado. Sílvia está deprimida e vendo-se zombada por Dona Barata revela-lhe o objeto de seu amor. Dona Barata muda de tom e promete que fará seu filho a amar. Não por mais nada que não seja a riqueza da família de Sílvia. A cena termina com Dona Barata indo chamar seu filho e Sílvia, renovada, querendo ser rainha daqueles prados, pois que tem amor e riqueza.

Cena III
A Apresentação de Baratinho
"Baratinho, o Nenen, é um rapaz gentil e elegange, cuja originalidade consiste em pintar as pontas de suas antenas e a para direita com pólen de açucena. É poeta e visionário que, instruído pela Barata Nigromântica, de que é discípulo, espera um grande mistério que há de decidir sua vida... Traz em uma de suas patas - mãos - um pedacinho de cortiça de árvore onde estava escrevendo um poema... Dona Barata vem a seu lado, exaltando a fortuna de Sílvia. Esta se dedica a galantear com a margarida de um lado para o outro, e, colocando uma patinha na cara, suspira, arrebatada. O sol já está quimando"
O rapaz insiste com mãe sobre a decisão de que não se casará. Informa ainda que não gosta de Sílvia e só se casaria por amor. Dona Barata insiste na riqueza de Sílvia, relativiza o amor e vai para dentro de casa, cozinhar, deixando os dois em cena.

Cena IV
A Conversa de Baratinho com a Baratinha Sílvia

Baratinho, sentado perto de Sílvia, lê um trecho de poema, e é elogiado por ela. Sílvia que busca o amor, sem cessar.  Baratinho defende que o amor é bem difícil de encontrar. Baratinho informa que está apaixonado por uma estrela que se parece com uma flor e que mora na sua imaginação. Baratinho diz com todas as letras que não quer Sílvia, em que pese ter sido carinhoso com ela um dia. Sílvia quer chorar e Baratinho a consola, bem junto junto, quando duas outras Baratinhas passam por eles, brincando e os chamando de noivos. Baratinho acha triste a situação. 

Cena V
Lacrauzito, o Corta-Vime, a parece: grande desconforto

"Lacrauzito é um velho lenhador que vive no bosque e que frequentemente desce ao povoado para embriagar-se. É glutão insaciável e pessoa má. Fala com voz aguardentosa".
Lacrauzito está completamente bêbado e é extremamente incoveniente e ameaçador. Parece sentir prazer em ameaçar e causar medo. Ao final da cena, após muito aporrinhar, está caído de bêbado. Então surge como que uma procissão de Baratas Camponesas, que carregam nos braços uma Mariposa ferida em uma das asas. Teria sofrido uma queda. Com elas vêm a Barata Nigromântica, que compara a Mariposa a uma estrela caída e agradece a honra de poder tratá-la. Dona Barata traz ervas e Baratinho está visivelmente comovido. Sílvia informa à mãe, Dona Orgulhos, que Baratinho não a quer. Dona Orgulhos se declara sem meios de agir e desdenha da aparência de Baratinho, "tão pintado e tão medonho". A Mariposa suspira e diz que quer voar e, misteriosamente, "o fio é extenso". "O fio vai à estrela/onde está meu tesouro;/minhas asas são de prata,/meu coração é de ouro;/o fio sonhando está/com seu vibrar de bezouro...". Lacrauzito é a morte. Baratinho é o amor. O que é a Mariposa? O fio? A cena termina com as Baratas Camponesas conduzindo a Mariposa para dentro da casa de Dona Barata.

Cena VI
A Certeza de Baratinho e a sentença de Nigromântica
Baratinho confessa à papoula que já viu sua estrela misteriosa. Lacrauzito: morte, morte, morte... A certeza: "meu coração se queixa/dum amor que já sente". A sentença: "Baratinho, teu viver/depende das asas dessa grande mariposa./Não a fites com ânsia porque te podes perder,/quem o diz é tua amiga, já velha e achacosa./ Este círculo mágico o diz bem claramente./Se dela te enamoras, ai de ti, morrerás./Cairá na tua pobre fronte a noite ingente./A noite sem estrelas, onde te perderás./Medita até a tarde". A Barata Nigromântica faz com um palito um círculo no chão. Baratinho parece estar diante da vida e da morte e do fio que as liga. Baratinho chora. Cumprida sua missão, Lacrauzito, aos tombos, vai-se embora, cantando. "A centa está cheia de luz".

quinta-feira, 14 de abril de 2011

O Sortilégio da mariposa II - O Prólogo


O Sortilégio da Mariposa
(Comédia em dois atos e um prólogo)

Federico García Lorca (1919)

PRÓLOGO

"Senhores: A comédia que ides ouvir é humilde e inquietante, comédia rasgada do que quer arranhar a lua e arranha seu coração. O amor, o mesmo que passa com sua burlas e seus fracassos pela vida do homem, passa nesta ocasião por uma escondida pradaria povoada de insetos onde havia muito tempo era a vida aprazível e serena. Os insetos estavam contentes, só se preocupavam com beber tranquilos as gotas de orvalho e educar seus filhinhos no santo temor de seus deuses. Amavam-se por costume e sem preocupações. O amor passava de pais a filhos como joia velha e esquisita que o primeiro inseto recebera das mãos de Deus. Com a mesma tranquilidade e a certeza de que o pólen das flores se entrega ao vento, gozavam o amor sob a relva úmida. Mas um dia... houve um inseto que quis ir mais além do amor. Enamorou-se de uma visão que estava muito longe de sua vida... Talvez leu com muita dificuldade algum livro de versos que deixou abandonado sobre o musgo um poeta dos poucos que vão ao campo, e se envenenou com aquilo de 'eu te amo, impossível mulher'. Por isso, suplico a todos que não deixeis nunca livros de versos nas pradarias, porque podeis causar muita desolação entre os insetos. A poesia que pergunta por que correm as estrelas é muito daninha para as almas em botão... É inútil dizer-vos que o enamorado bichinho morreu. E é que a morte se disfarça de Amor! Quantas vezes o enorme esqueleto portador da foice, que vemos pintado nos devocionários, toma a forma de uma mulher para enganar-nos e abrir-nos as portas de sua sombra! Parece que o menino Cupido dorme muitas vezes nos buracos vazios de sua caveira. Em quantas antigas estorietas, uma flor, um beijo ou um olhar fazem o terrível ofício de punhal! Um velho silfo do bosque, escapado de um livro do grande Shakespeare, que anda pelos prados sustentando com umas muletas suas asas murchas, contou ao poeta esta estória oculta num anoitecer de outono, quando os rebanhos se foram, e agora o poeta vo-la repete envolta em sua própria melancolia. Mas antes de começar quero fazer-vos o mesmo pedido que a ele fez o velho silfo naquele anoitecer de outono, quando os rebanhos se foram. Por que nos causam repugnância aqueles insetos limpos e brilhantes que se movem graciosamente entre as ervas?  E por que a vós, homens, cheios de pecados e de vícios incuráveis, inspiram-vos asco os bons dos vermes que passeiam tranquilamente pela pradaria tomando o sol da manhã morna? Que motivos tendes para desprezar o que há de ínfimo na Natureza? Enquanto não amardes profundamente a pedra e o verme não entrareis no reino de Deus. O velho silfo disse também ao poeta: 'Muito em breve chegará o reino dos animais e das plantas; o homem se esquece do seu Criador, e o animal e a planta estão bem perto de sua luz; dize, poeta, aos homens que o amor nasce com a mesma intensidade em todos os planos da vida; que o mesmo ritmo que tem a folha embalada pelo vento tem a estrela longíqua, e que as mesmas palavras que diz a fonte na úmbria, repete-as no mesmo tom o mar; dize ao homem que seja humilde, tudo é igual na Natureza'. E nada mais disse o velho silfo. Agora, escutai a comédia. Talvez riais ao ouvir esses insetos falarem como homenzinhos, como adolescentes. E se alguma lição dela tirardes, ide ao bosque para dar graças ao velho silfo das muletas, num anoitecer tranquilo quando se tenham ido embora os rebanhos".

O Sortilégio da mariposa I - As Personagens


O Sortilégio da mariposa
(Comédia em dois atos e um prólogo)

Federico García Lorca (1919)

Personagens

Dona Barata, Barata Nigromântica, Baratinha Sílvia, Dona Orgulhos (mãe da Baratinha Sílvia), Mariposa, Baratinho (o Nenen, filho de Dona Barata), Lacrauzito (o Corta-Vimes), 1º Vagalume, 2º Vagalume, 3º Vagalume, 1ª Barata Camponesa, 2ª Barata Camponesa, Outras Baratas Camponesas, Baratas Guardiãs, Barata Santa.