domingo, 27 de março de 2011

O tempo nas cidades*

Milton Santos (1926-2001)
"Eu lembraria, por exemplo, o que li em Baillard, quando ele divide o tempo em três tipos: o tempo cósmico, o tempo histórico e o tempo existencial. O tempo cósmico, da natureza, objetivado, sujeito ao cálculo matemático; o tempo histórico, objetivado, pois a História o testemunha, mas no qual há cesuras, em vista de sua profunda carga humana; e o tempo existencial, tempo íntimo, interiorizado, não externado como extensão, nem objetivado, é o tempo do mundo da subjetividade e não da objetividade. Mas esses tempos todos se comunicam entre eles, na medida em que o tempo é social. Parafraseando Heidegger, para quem sem o homem não há tempo, é desse tempo do homem, do tempo social contínuo e descontínuo, que não flui de maneira uniforme, que temos de tratar.(...)
"Do tempo matemático, tempo cósmico, tempo do relógio, ao tempo histórico, vai toda uma evolução que é assinalável ao longo da História. (...) O tempo individual, o tempo vivido, sonhado, vendido e comprado, tempo simbólico, mítico, tempo das sensações, mas com significação limitada, não é suscetível de avaliação se não referido a esse tempo histórico, tempo sucessão, tempo social (...).
"(...) um filósofo latinoamericano, Sérgio Bagú, distingue o tempo como sequência o transcurso - o tempo como raio de operações - o espaço - e o tempo como rapidez de mudanças, como riqueza de operações. Aí se vê que o tempo aparece como sucessão, permitindo uma periodização; depois aparece como raio de operações, isto é, o tempo que nos é concomitante, que nos é coetâneo, ou que foi coetâneo de uma outra geração, e essas acepções do tempo nos permitem trabalhar não só o espaço geográfico com um todo, mas a cidade em particular. Há uma ordem do tempo que é a das periodizações, que nos permite pensar na existência de gerações urbanas, nas cidades que se sucederam ao longo da História, e que foram construídas segundo diferentes maneiras, diferentes materiais e também segundo diferentes ideologias. (...)
"São Paulo que conheci quando jovem tinha relógios, mas aqueles relógios eram apenas uma mostra da modernidade. São Paulo ainda não era uma grande cidade, mas imitava os grandes centros para parecer também uma grande cidade. Nesse entretempo, os relógios desapareceram de São Paulo, quando São Paulo se torna Cronópolis [de Baillard] como qualquer outra grande cidade do mundo, ao mesmo tempo em que as assincronias e as dessincronias se aceleram. O império do tempo é muito grande sobre nós, mas é, sobre nós, diferentemente estabelecido. Nós, homens, não temos o mesmo comando do tempo na cidade; as firmas  não o têm, assim como as instituições também não o têm. Isso quer dizer que, paralelamente a um tempo que é sucessão, temos um tempo dentro do tempo, um tempo contido no tempo, um tempo que é comandado, aí, sim, pelo espaço. (...)
"Nesse momento em que o tempo aparece como havendo dissolvido o espaço, e algumas pessoas o descrevem assim, a realidade é exatamente oposta. O espaço impede que o tempo se dissolva e o qualifica de maneira extremamente diversa para cada ator. (...)
"Não fosse assim, a cidade não permitiria, como São Paulo permite, a convivência de pessoas pobres com  pessoas ricas, de firmas poderosas com firmas fracas, de instituições dominantes e de instituições dominadas. Isso é possível porque existe um tempo dentro do tempo, quer dizer, o recorte sequencial do tempo; nós temos um outro recorte, que é aquele que aparece como espaço. (...)
"De tal maneira que não teríamos apenas, (...) as noções de tempo longo e de tempo curto. Eu, modestamente, proporia que ao lado dos tempos curto e longo, falássemos de tempos rápidos e tempos lentos. (...)
"Tempo rápido é o tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições hegemônicas e tempo lento é o tempo das instituições, das firmas e dos homens hegemonizados. (...)

* Título de artigo publicado por Milton Santos na revista "Ciência e Cultura", da SBPC, Ano 54, nº 2, out-nov-dez/2002, que recortamos e colamos.

Imagem: Google images (atarde.com)

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