quinta-feira, 30 de junho de 2011

Marcas II

A Lição de Anatomia do Dr. Deyman (1656). Rembrandt.
Terminei ontem as aulas da outra disciplina que cursava nesse primeiro semestre: Narratologias. Registre-se: também sem nenhuma ausência. Não basta olhar para ver, mas eu digo: estive nas duas pontas da abordagem. Numa, o estruturalismo, a dissecação, músculo por músculo, trabalho de legista forense (nos acompanharem figurinhas como B. Eikenbaum, V. Chklosvki, V. Jirmunki, J, Tynianov, R. Jakobson, B. Tomachevski, V. Propp, R. Barthes, T. Todorov, G. Genette, S. Chatmam, F. Stanzel, N. Friedman, G. Zoran, P. Hamon, J. Ricardou, W. Booth, J. Kristeva, J. Pouillon, P. Ricoeur, M. Bal, R. Scholes, R. Kellog, G. Lukács, P. Lubbock, M. Fludernick...). Nunca, jamais em minha vida encontrei tanta teoria reunida. Na outra ponta, já se disse, o estudo do imaginário, que, para toda essa gente e mais alguns outros, convive com o delírio. Se era essa a intensão, deu n'água: a disciplina não me intimidou. Pelo contrário, fortaleceu minhas convicções de busca do "meu espaço" temático. Se era pra contar de um a cinco: dois! Vamos.

Imagem: Google images.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Marcas


Terminei hoje, sem nenhuma ausência, a primeira das cinco disciplinas obrigatórias do Mestrado: Vertentes do imaginário na obra dramática de Federico Garcia Lorca. Li todas as peças e fui o responsável por apresentar Yerma à turma, num seminário. Queria ter falado meia hora e me enrolei por quase duas. Na base do curso estavam Husserl, Bachelard, Jung, Eliade e Gilbert Durand entre outros. Falta o artigo, que faz sofrer bastante para produzir. Na verdade são dois: um para a avaliação da disciplina (e que talvez vá fazer parte de um livro), e outro, para ser apresentado num congresso em novembro em Uberlândia-MG sobre o Imaginário em Lorca. Se nesse primeiro momento tivesse que contar até cinco: um! Juro por Deus que não sei como encontro forças. Deve ser Nele mesmo.

Inacreditáveis


Eu não posso acreditar que um sentimento cristalino desapareça. Eu tenho razões para não acreditar. A casa que já vínhamos construindo é muito sólida pela sua forma de construção: não é feita de paredes e cimento. Nosso lugar no mundo vinha sendo construído de sofrimentos partilhados e angústias inomináveis. De carências e dores profundas de dois corações que um dia se encontraram e se reconheceram.
Eu me lembro: o mais velho se encheu de medo; a mais jovem se encheu de graça e provocação, da mais sábia e jovem provocação. Anjo bom que me acompanha, peço-te: não me deixe sem minha esperança. Não reforce o meu silêncio. Nunca acreditei, mas sempre esperei, sonhando, encontrar amor como o que me tomou no meio da vida. Agora passo os dias imaginando... Como pude não compreender? Que força, que herança me prendia? Pertenço a uma gente de silêncio... Eu desconfio das palavras: me custa muito achar que uma esteja correta. Uma que está corretamente empregada à situação. De tanto não dizer, já não consigo juntar as palavras para me expressar como meu coração me pede. Que quer dizer a guitarra flamenca? Seus acordes são estalos de aço no meu peito. Dores da terra, da gente da terra. Dessa gente sufocada pela poeira dos ventos implacáveis que as açoitam. Não é possível falar, apenas chorar e esses que conseguem “dizer” ao som das cordas, que devem ser feitas, como indicam a raiz do termo, da mesma matéria do coração. Dos sonhos impossíveis? Não posso, não posso acreditar em perdas tamanhas... Vejo com meus olhos que isso não pode ser.

No novo abrigo (não consigo dizer casa), sozinho continuo esperando. “Só” é outra daquelas palavras: como posso estar só, se me acompanham todos a quem quero bem e sei que estão também comigo?

Desde sábado tenho um novo endereço. Dia de muito choro e palavras lançadas soltas ao vento. Apesar de terem todas elas motivo e destino, saíam-me explodidas, pois já não podiam permanecer silenciadas. Saíam porque queriam ou, mais que isso, porque precisavam sair. Foi assim durante quase todo o percurso que ligava um ponto ao outro. Como dizer dos motivos da mudança? Um livro ou uma vida inteira de dores e amores e fraturas irrecuperáveis, do ponto em que tiraram de nós o meu pai. Mentira: de muito antes. Desde menino sentia a dor mundo, que apenas se colocou à minha frente, materialmente, quando nos vimos sós, sem nada, além de nós mesmos. Resisti dez anos e sucumbi. Dez anos de silêncio, trabalho e embriaguez. Há dois dias moro com minha sombra e minha esperança. Na missa das onze e meia de anteontem um cântico dizia que uma voz do céu ordenava: “caminhai!”. Acredito estar fazendo isso. Quanto à minha sombra devo esclarecer: como não fiz pacto nenhum com demo infeliz nenhum que tivesse colocado como condição de que ficaria com minha sombra, eu continuo com a minha, sempre colada a meus pés, como já se sabe que são as sombras desde sempre, parece. Que demônio poderia pensar que um homem para existir precisasse bloquear a luz e se projetar na sombra? Eu, de qualquer forma, continuo com a minha “normalmente”. Mais que isso: ganhei, naquele mesmo sábado, A Sombra, uma cadelinha que faz jus ao nome. Tem a cor que normalmente têm as sombras. Não por minha vontade, pois quando a Simone me disse que ia me dar um cachorro, num segundo lhe arranjei o nome: Sombra. Acontece que pedi um cachorro branco, para o simples detalhe de diferenciar uma sombra da outra. Veio um preto, o que não faz a menor diferença: apesar do mesmo nome, são diferentes de todo o jeito. Algo em comum que me impressiona: as duas vivem coladas aos meus pés. Mas a sombra viva tem mais liberdade e se descola por alguns segundos ou por alguns metros. É uma menina, a cadelinha Sombra.

Imagens: Sombra dormindo e A Batalha de Marengo.

sábado, 25 de junho de 2011

Última noite na velha casa

Vincent Van Gogh, A pair of shoes, 1886
As primeiras coisas que peguei foram os sapatos e chinelos velhos. Deve fazer algum sentido para alguém que está saindo, que acredita que está dando passos. Depois coloquei as mãos e separei todos os pedacinhos de amor guardados. Mil formas cristalizadas de um sentimento que ainda existe como sempre. Fragmentos de matéria insondáveis que ao toque arrepiam a pele e contraem o coração até o vazio impossível. Depois do choro os velhos discos e os muitos e insuficientes livros e o resto. Recolho todas essas coisas e não sei o que vai comigo, além da solidão e da chama acesa da esperança. Vamos.

Imagem: Google images (imaginariopoetico.com.br)

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Como repararemos nossas perdas


"Vês além essa tétrica planície,
Mansão de ruínas e de dor, só manifesta
Pelo fusco clarão que hórrido exalam
Estas lívidas chamas truculentas?
Vamo-nos para ali, saiamos fora
Do furor destas ondas abrasadas;
Descansemos ali, se ali descanso
Pode encontrar-se algum: eia! tornemos
A juntar nossas forças profligadas;
Busquemos modo como de hoje em diante
Faremos ao tremendo Imigo nosso
O maior mal que esteja ao nosso alcance,
Como repararemos nossas perdas,
Como suplantaremos nossos danos;
Indaguemos que auxílios nos compete
Ganhar pela esperança, - e, em caso oposto
Qual resolução que achar podemos
Do desespero nos terríveis lances".

John Milton, em O Paraíso perdido.


Imagem: Google images (Ilustração de John Martin)

"be happy, Jabuti!!!"


Mensagem enigmática recebida alhures

"'O jabuti, que só possuía uma casca branca e mole deixou-se morder pela onça que o atacava.
Morder tão fundo que a onça ficou pregada no jabuti e acabou por morrer.
Do crânio da onça o jabuti fez seu escudo.'
Antonio Callado, Quarup.
Epígrafe  de Uma literatura nos trópicos, de Silviano Santiago".

Mais não digo por puro não saber nem poder.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Reduções para a leitura


Fico às vezes pensando o quanto o estudo da Literatura destrói o prazer de ler. Os professores de literatura me parecem, quase todos, médicos frustrados, verdadeiramente vocacionados para a anatomia e o culto da forma. Há uma espécie de sublimação do ato do dissecador em suas aulas. Não quero pensar na imagem infernal que aparece na minha alma, quando os vejo dissecando seres vivos. No momento, gostaria de dizer apenas que não precisa ser assim. A escola não precisa reduzir o prazer de ler, como infelizmente costuma fazer. Não quero a leitura para o deleite do burguês desocupado nem aquela que lhe impõe a resistência marxista combatente, porque são, ambas, redutoras e limitadas como são todas as reduções. Quero a leitura do ser humano que lê e escreve para saber por que escreve e lê. Vou voltar ao assunto em breve. Uma amiga um dia me disse que eu deveria colocar mais opinião neste espaço, e agora eu não paro mais de lançar facas e de blasfemar.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Always on my mind


Always On My Mind
Johnny Christopher / Mark James / Wayne Carson

Maybe I didn't treat you
Quite as good as I should have
Maybe I didn't love you
Quite as often as I could have
Little things I should have said and done
I just never took the time

You were always on my mind
You were always on my mind

Maybe I didn't hold you
All those lonely, lonely times
And I guess I never told you
I'm so happy that you're mine
If I made you feel second best
Girl, I'm sorry I was blind

You were always on my mind
You were always on my mind

Tell me; tell me that your sweet love hasn't died
Give me, give me one more chance
To keep you satisfied satisfied

Little things I should have said and done
I just never took the time
You were always on my mind
You are always on my mind
You are always on my mind

A Raiva não passou


A raiva não passou e talvez por isso ainda não li as 100 páginas necessárias. Gostaria apenas de acrescentar que é uma grande bobagem se pensar em uma ciência da literatura. Isso jamais vai existir e é bom que nunca exista mesmo. Em literatura só devem existir escritores, textos e leitores. Fora isso, só aceito que se acrescentem a história da produção, a  história da literatura e a história da recepção. Inimaginável querer que um estudioso, um professor de literatura não saiba (e jure que não é preciso saber) psicologia, física, biologia, antropologia, história. Que pensem que a eles basta a literatura. Como, se a literatura seja, tavez a mais ampla expressão do pensamento humano? Como? Vejamos Lévi-Strauss: "Uma antropologia entendida no seu mais amplo sentido, ou seja, um conhecimento do homem que associe diversos métodos e disciplinas, e que um dia nos revelará os mecanismos secretos que movem este hóspede que está presente sem ter sido convidado para os nossos debates: o espírito humano" (em Antropologia estrutural, p.91). Vejamos ainda Bachelard: "Diante dos espaços concretos, cuja aquisição os psicólogos nos ensinam - seja esse espaço, aliás, uma forma de intuição ou uma experiência mais ou menos esquematizada -, os matemáticos formaram uma multidão de construções, de essências muito diversas, mas das quais é possível destacar três grandes classes muito importantes: os espaços generalizados, os espaços de configuração e os espaços abstratos (...) Por espaços generalizados entendemos os espaços que mantêm ligações intuitivas com o espaço euclidiano comum: será esse o caso, por exemplo, dos espaços euclidianos com mais de três dimensões (...) Os espaços de configuração ganharam muita importância na mecânica ondulatória com os trabalhos de Schrödinger. Têm como finalidade principal descrever os movimentos de um sistema de pontos nas formas do movimento de um ponto único (...) Um espaço resulta do balanço do que se pode rejeitar e do que se deve reter da experiência. Uma segunda consequência mais oculta é que os temas de abstração são adequados para fornecer quadros de realização. Um espaço abstrato é uma hipótese plausível para organizar uma experiência. É uma tentação racional de experimentar. (...) Será necessário destacar o aspecto profundo, primordial, da idéia teórica que organiza um espaço?" (em A Experiência do espaço na física contemporânea, p.72-78). O mais capaz professor de literarura não sabe nada sobre as dúvidas que pesam as cabeças dos físicos, por exemplo, no campo da matéria: onda ou partícula? Sempre energia... E Riobaldo fala com todas as letras que o que conta não são propriamente os fatos, mas a matéria vertente, a coisa que se transforma noutra coisa, no seu contrário. Diz ainda aquele que o espaço está em toda parte. Sentencio: se eu estou atrasado uns mil anos, a crítica literária o está pelo menos uns cinquenta. Não gostaria de ter generalizado tanto.

Algo em comum









Albert, Bispo, Charles, Robert, Janis, Raul, Jean, Afonso e Friedrich.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Lima Barreto


"Havia dias que notava com surpresa a indiferença que tinha então pelos meus destinos. Aquele meu fervor primeiro tinha sido substituído por uma apatia superior a mim. Tudo me parecia acima de minhas forças, tudo me parecia impossível; e que não era eu propriamente que não podia fazer isso ou aquilo, mas eram todos os outros que não queriam, contra a vontade dos quais a minha era insuficiente e débil. A minha individualidade não reagia; portava-se em presença do querer dos outros como um corpo neutro; adormecera, encolhera-se timidamente, acovardava".

Afonso Henriques de Lima Barreto,
no início do Cap. VII do Recordações do Escrivão Isaías Caminha.

Esse moço está complicando a minha vida. Não quero me queixar, mas ela já está bastante penosa para mais acréscimos. Todos os poucos à minha volta sabem que leio 8 a 10 horas por dia uma infinidade de textos de todas as espécies e destinados a vários fins. Devo dizer a essa altura: fins específicos e outros fins. Até há cinco dias exatamente vinha separando com graciosa clareza o fim específico: o espaço em Grande Sertão: Veredas. Por essas idas e vindas, deparei-me com a tese de doutorado de um senhor chamado Osman Lins: Lima Barreto e o espaço romanesco, de cerca de 35 anos atrás. Fui, num estalo do espírito e numa contração da alma, tomado de um estranho ódio ao médico, diplomata ocioso, amigo dos próceres da República, o tal João, o mítico João, o mágico João. Tudo porque, já nas primeiras páginas do simplesmentes brilhante texto de Osman Lins, voltei à leitura de Lima Barreto, refazendo-a já quase toda. Freneticamente e, confesso, chorando quase todos os dias. Avancei pouco no texto de Osman Lins, tomado que fiquei pelo reencontro com Lima Barreto. Já sabia de todas as injustiças (sociais e literárias) por que passou o criador do Major Quaresma. Já sabia que o Machadinho (que já estou achando um safado, dissimulado), ao criar a Academia, não se lembrou de Barreto... Uma ova que não se lembrou! Não quis (simplesmente não quis chamar seu irmão). Vai morrer... Antes ele do que eu, não é seu Joaquim? Não vou entrar em detalhes aqui por causa do ódio e da situação. Amanhã estarei mais calmo após mais 100 páginas. Será? A complicação a que me referi no início diz respeito a "detalhes" importantes e que estão a ponto de interferir no andamento da pesquisa: a) Lima Barreto me revela o espaço no romance, assim como eu vinha buscando em João Guimarães Rosa; b) Lima Barreto fala de dentro pra fora (se numa "literatura menor" isso pouco me importa - posto que mais humana) e se seus textos não têm o acabamento formal do senhor João e do senhor Joaquim, tenho certeza de que houve razões para isso; c) O Riobaldo talvez tenha sido criado numa sala climatizada e cheia de mordomos no consulado brasileiro em Hamburgo; d) Afonso Henriques de Lima Barreto e tudo que escreveu tem um cheiro de um bar porco do Largo do Machado ou imagens de pisos frios e de janelas altas de hospícios. Para Georg Lukács, "os novos estilos, os novos modos de representar a realidade não surgem jamais de uma dialética imanente das formas artísticas, ainda que se liguem sempre às formas e sentidos do passado. Todo novo estilo seurge como uma necessidade histórico-social da vida e é um produto necessário da evolução social. Mas o reconhecimento do caráter necessário da formação dos estilos artísticos não implica, de modo algum, que esses estilos tenham todos o mesmo valor e estejam todos num mesmo plano. A necessidade pode ser, também, a necessidade do artisticamente falso, disforme e ruim". Se eu acrescentasse "intencional, verdadeiramente falso, disforme e ruim", teria hoje Lima Barreto como o melhor entre todos. Em que pese e aceito, a  minha volta às origens marxistas. Minhas.

Imagem: Google images (Largo do Machado-RJ, colecionador Ronildo P. Machado)

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Poema do amor total

Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Vinicius de Moraes

domingo, 19 de junho de 2011

Missa das onze e meia


A vós louvor, honra e glória eternamente!

"Sede bendito, Senhor Deus de nossos pais.
Sede bendito, nome santo e glorioso.
No templo santo onde refulge a vossa glória.
E em vosso trono de poder vitorioso.
Sede bendito, que sondais as profundezas,
e superior aos querubins vos assentais.
Sede  bendito no celeste firmamento"

Cântico de Daniel.

Magma IV


Impaciência
(Duas variações sobre o mesmo tema)

I
Eu quero dormir
longamente...
(um sono só...)
Para esperar assim
o divino momento que eu pressinto,
em que hás de ser minha...

Mas...
e se essa hora não devesse chegar nunca?...
Se o tempo,
como as outras cousas todas,
te separa de mim?!...

Então...
ah! então eu gostaria
que o meu sono,
friíssimo e sem sonhos
(um sono só...)
não tivesse mais fim...

II
Se eu pudesse correr pelo tempo afora,
vertiginosamente,
futuro adiante,
saltando tantas horas tediosas,
vazias de ti,
e voar assim até o momento de todos os momentos,
em que há de ser minha!...

Mas...
e se esse minuto faltar
nas areias de todas as ampulhetas?...
E se tudo fosse inútil:
a máquina de Wells,
as botas de sete léguas do Gigante?!...

Então...
ah! então eu gostaria
de desviver para trás, dia por dia,
para parar só naquele instante,
e nele ficar, eternamente, prisioneiro...
(Tu sabes, aquele instante em que sorrias
e me fizeste chorar...)

João Guimarães Rosa, em Magma.

Riobaldo-Pequeno dicionário para o sertão (Parte 2)


14. O Sertão é e não é;
15. Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte que o poder do lugar;
16. O Sertão aceita todos os nomes: aqui é os Gerais, lá é o Chapadão, lá acolá é a Caatinga.

sábado, 18 de junho de 2011

Maria Mutema


“Naquele lugar existia uma mulher, por nome Maria Mutema, pessoa igual às outras, sem nenhuma diversidade. Uma noite, o marido dela morreu, amanheceu morto de madrugada. Maria Mutema chamou socorro, reuniu todos os mais vizinhos. O arraial era pequeno, todos vieram certificar. Sinal nenhum não se viu, e ele tinha estado nos dias antes em saúde apreciável, por isso se disse que só de acesso do coração era que podia ter querido morrer. E naquela tarde mesma do dia dessa manhã, o marido foi bem enterrado.
“Maria Mutema era senhora vivida, mulher em preceito sertanejo. Se sentiu, foi em si, se sofreu muito não disse, guardava a dor sem demonstração. Mas isso lá é regra, entre gente que se diga, pelo visto a ninguém chamou atenção. O que deu em nota foi outra coisa: foi a religião da Mutema, que daí pegou a ir à igreja todo santo dia, afora que de três em três agora confessava. Dera em carola – se dizia – só constante na salvação de sua alma. Ela sempre de preto, conforme os costumes, mulher que não ria – esse lenho seco. E, estando na igreja, não tirava os olhos do padre.
“O padre, Padre Ponte, era um sacerdote bom-homem, de meia idade, meio gordo, muito descansado nos modos e de todos bem estimado. Sem desrespeito, só por verdade no dizer, uma pecha ele tinha: ele relaxava. Gerara três filhos, com um a mulher, simplória e sacudida, que governava a casa e cozinhava para ele, e também atendia pelo nome de Maria, dita por aceita alcunha a Maria do Padre. Mas não vá maldar o senhor maior escândalo nessa situação – com a ignorância dos tempos, antigamente, essas coisas podiam, todo o mundo achava trivial. Os filhos, bem-criados e bonitinhos, eram ‘os meninos da Maria do Padre’. E em tudo o mais o Padre Ponte era um vigário de mão cheia, cumpridor e caridoso, pregando com muita virtude seu sermão e atendendo em qualquer hora do dia ou da noite, para levar aos roceiros o conforto da santa hóstia do Senhor ou dos santos-óleos.
“Mas o que logo se soube, e disso se falou, era em duas partes: que a Maria Mutema tivesse tantos pecados para de três em três dias necessitar de penitência de coração e boca; e que o Padre Ponte visível tirasse desgosto de prestar a ela o pai-ouvido naquele sacramento, que entre dois só dois se passa e tem de ser por ferro de tanto segredo resguardado. Contavam, mesmo, que, das primeiras vezes, povo percebia que o padre ralhava com ela, terrível, no confessionário. Mas a Maria Mutema se desajoaelhava de lá, de olhos baixos, com tanta humildade serena, que uma santa padecedora mais parecia. Daí, aos três dias, retornava. E se viu, bem, que Padre Ponte todas as vezes fazia uma cara de verdadeiro sofrimento e temor, no ter de ir, a junjo, escutar a Mutema. Ia, porque confissão clamada não se nega. Mas ia a poder de ser padre, e não de ser só homem, como nós.
“E daí mais, que, passando o tempo, como se diz: no decorrido, Padre Ponte foi adoecido ficando, de doença para morrer, se viu logo. De dia em dia, ele emagrecia, amofinava a modo, tinha dores, e em fim encaveirou, duma cor amarela de palha de milho velho; dava pena. Morreu triste. E desde por diante, mesmo quando veio outro padre para São João Leão, aquela mulher Maria Mutema nunca mais voltou à igreja, nem por rezar nem por entrar. Coisas que são. E ela, dado que viúva soturna assim, que não se cedia em conversas, ninguém que alcançou de saber por que lei ela procedia e pensava.
“Por fim, no porém, passados anos, foi tempo de missão, e chegaram no arraial os missionários. Esses eram dois padres estrangeiros, p’ra fortes e de caras coradas, bradando sermão forte, com forte voz, com fé braba. De manhã à noite, durado de três dias, eles estavam sempre na igreja, pregando, confessando, tirando rezas e aconselhando, com entusiasmados exemplos que enfileiravam o povo no bom rumo. A religião deles era alimpada e enérgica, com tanta saúde como virtude; e com eles não se brincava, pois tinham de Deus algum encoberto poder, conforme o senhor vai ver, por  minha continuação. Só que no arraial foi grassando aquela boa bem-aventurança.
“Aconteceu foi no derradeiro dia, isto é, véspera, pois no seguinte, que dava em domingo, ia ser festa de comunhão geral e glória santa. E foi de noite, acabada a bênção, quando um dos missionários subiu no púlpito, para a prédica, e tascava de começar de joelhos, rezando a salve-rainha. E foi nessa hora que a Maria Mutema entrou. Fazia tanto tempo que não comparecia em igreja; por que foi, então, que deu de vir?
“Mas aquele missionário governava com luzes outras. Maria Mutema veio entrando, e ele esbarrou. Todo mundo levou um susto: porque a salve-rainha é oração que não se pode partir em meio – em desde que de joelhos começada, tem de ter suas palavras seguidas até o tresfim. Mas o missionário retomou a fraseação, só que com a voz demudada, isso se viu. E, mal no amém, ele se levantou, cresceu na beira do púlpito, em brasa vermelho, debruçado, deu soco no pau do peitoril, parecia um touro tigre. E foi de grito:
“– ‘A pessoa que por derradeiro entrou, tem que sair! A p´ra fora, já, já, essa mulher!’
“Todos, no estarrecimento, caçavam de ver a Maria Mutema.
“– ‘Que saia, com seus maus segredos, em nome de Jesus e da Cruz! Se ainda for capaz de um arrependimento, então pode ir me esperar, agora mesmo, que vou ouvir sua confissão... Mas confissão esta ela tem de fazer é na porta do cemitério! Que vá me esperar lá, na porta do cemitério, onde estão dois defuntos enterrados!...’
  “Isso o missionário comandou: e os que estavam dentro da igreja sentiram o rojo dos exércitos de Deus, que lavoram em fundura e sumidade. Horror deu. Mulheres soltaram gritos, e meninos, outras despencavam no chão, ninguém ficou sem se ajoelhar. Muitos, muitos, daquela gente, choravam.
“E Maria Mutema, sozinha em pé, torta magra de preto, deu um gemido de lágrimas e exclamação, berro de corpo que faca estraçalha. Pediu perdão! Perdão forte, perdão de fogo, que da dura bondade de Deus baixasse nela, em dores de urgência, antes de qualquer hora de nossa morte. E rompeu fala, por entre prantos, ali mesmo, a fim de perdão de todos também, se confessava. Confissão edital, consoantemente, para tremer exemplo, raio em pesadelo de quem ouvia, público, que rasgava gastura, como porque avessava a ordem das coisas e o quieto comum do viver transtornava. Ao que ela, onça monstra, tinha matado o marido – e que ela era cobra, bicho imundo, sobrado podre de todos os estercos. Que tinha matado o marido, aquela noite, sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum, causa nenhuma –; por que nem sabia. Matou – enquanto ele estava dormindo – assim despejou no buraquinho do ouvido dele, por um funil, um terrível escorrer de chumbo derretido. O marido passou, lá o que diz – do oco para o ocão – do sono para a morte, e lesão no buraco do ouvido dele ninguém não foi ver, não se notou. E, depois, por enjoar do Padre Ponte, também sem ter queixa nem razão, amargável mentiu, no confessionário: disse, afirmou que tinha matado o marido por causa dele, Padre Ponte – porque dele gostava em fogo de amores, e queria ser concubina amásia... Tudo era mentira, ela não queria nem gostava. Mas, com ver o padre em justa zanga, ela disso tomou gosto, e era um prazer de cão, que aumentava de cada vez, pelo que ele não estava em poder de se defender de modo nenhum, era um homem manso, pobre coitado, e padre. Todo o tempo ela vinha em igreja, confirmava o falso, mais declarava – edificar o mal. E daí, até que o Padre Ponte de desgosto adoeceu, e morreu em desespero calado... Tudo crime, e ela tinha feito! E agora implorava o perdão de Deus, aos uivos, se esquedelhando, torcendo as mãos, depois as mãos no alto ela levantava.
“Mas o missionário, no púlpito, entoou grande o Bendito, louvado seja! – e, enquanto cantando mesmo, fazia os gestos para as mulheres todas saírem da igreja, deixando lá só os homens, porque a derradeira pregação de cada noite era mesmo sempre para os ouvintes senhores homens, como conforme.
“E no outro dia, domingo do Senhor, o arraial ilustrado com arcos e cordas de bandeirolas, e espoco de festa, foguetes muitos, missa cantada, procissão – mas todo o mundo só pensava naquilo. Maria Mutema, recolhida provisória presa na casa-de-escola, não comia, não sossegava, sempre de joelhos, clamando seu remorso, pedia perdão e castigo, e que todos viessem para cuspir em sua cara e dar bordoadas. Que ela – exclamava – tudo merecia. No meio-tempo, desenterraram da cova os ossos do marido: se conta que a gente sacolejava a caveira, e a bola de chumbo sacudia lá dentro, até tinia! Tanto por obra de Maria Mutema. Mas ela ficou no São João Leão ainda por mais de semana, os missionários tinham ido embora. Veio autoridade, delegado e praças, levaram a Mutema para culpa e júri, na cadeia de Arassuaí. Só que, nos dias em que ainda esteve, o povo perdoou, vinham dar a ela palavras de consolo, e juntos rezarem. Trouxeram a Maria do Padre, e os meninos da Maria do Padre, para perdoarem também, tantos surtos produziam bem-estar e edificação. Mesmo, pela arrependida humildade que ela principiou, em tão pronunciado sofrer, alguns diziam que Maria Mutema estava ficando santa.”
João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, p.238-243, 19ª ed. Nova Fronteira.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Random walk


Em minhas andanças pelos textos, em busca do espaço romanesco, tenho frequentado "lugares" esquisitos, como  o da casa randômica, por exemplo. O que me concede certa ilusão de segurança, é que estou geralmente bem acompanhado nessas incursões e via de regra tenho como guia Gaston Bachelard. É muito divertida a cena em que vejo os olhinhos assustados dos físicos apontando para um objeto, como a dizer: "aí está ele, você não vê?!". Para os físicos já não serve mais o espaço em que "se vai reto, vira pra direita ou pra esquerda e depois sobe" da mecânica newtoniana, em em pese a incerteza de não conseguirem explicar o duplo do objeto, que poderia ocupar dois lugares ao mesmo tempo, a sua matriz em partícula ou onda, sempre energia, do universo subatônico de Einstein. O objeto está em em toda parte, é só aprender a olhar. Na verdade é justamente "o observador" que complica o sistema. Outro dia, almoçando com um Doutor (possibilidades que o trabalho na Universidade me proporciona), economista, professor de econometria, apareceu um segundo Doutor, este físico, físico de partículas, a quem chamamos para se sentar à nossa mesa, pois havia lugar, espaço disputado nesses restaurantes de universidades em determinados horários. O físico se mostrava um pouco emburrado, diferente do seu trato comum. Após os cumprimentos, agradecimentos, sentenciou: "O mundo vai acabar!", o que bastou para iniciarmos uma séria de insinuações sobre o fato de ele estar trabalhando num projeto de acelerador de partículas, em parceria com uma universidade canadense. "Vocês vão explodir o mundo? - perguntamos. "Não, agora, ali, três moças entraram na minha frente, me tomaram três lugares na fila e nem se deram ao trabalho de me olhar na cara!". Acho que por pelo menos um segundo ficamos os dois, o economista e eu, pensando na perda do espaço do físico. Não se falou mais sobre o assunto, além do acordo geral de que o mundo vai mesmo acabar. Basta um homem morrer.

domingo, 12 de junho de 2011

Missa das onze e meia


"De repente, veio do céu um barulho como se fosse uma forte ventania, que encheu a casa onde eles se encontravam" (Atos 1,2).

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Riobaldo-Pequeno dicionário para o sertão (Parte 1)


1. Algo que pode ser grande, mas de que só se vê uma pequena parte;
2. Lugar em que, quando há tiros de verdade, primeiros os cachorros pegam a latir, intantaneamente - depois, então é que se vai ver se deu mortos;
3. Algo que precisa ser tolerado;
3. Lugar de localização não consensual;
4. Fim de rumo, terras altas;
5. Lugar impossível de se estar dentro;
6. Lugar onde um pode torar dez, quinze léguas sem topar com casa de morador;
7. Lugar onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade;
8. Lugar que se muda;
9. Lugar em que os gerais corre em volta;
10. Sertão é uma questão de opinião;
11. Lugar do sertanejo;
12. Sertão é um simples universozinho;
13. Lugar onde manda quem é forte, as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado.

Grande Sertão: veredas, JGR, adaptado.

domingo, 5 de junho de 2011

Alma


Medéia, Raquel, Psiquê, Perséfone e Yerma. Preciso ligar essas mulheres umas às outras, num discurso. Estou pensando que o fio pode ser o cordão umbilical, que me levaria à vontade delas de ser mãe. Psiquê estar no meio da relação não é puro acaso. A esterilidade imaginária resulta do não reconhecimento de que ser mãe é fato emocional posterior ao de ser mulher. Medéia teve filhos e os matou. Raquel não os podia ter e os teve pelo ventre de sua criada. Perséfone teve filhos negociados entre o Rei dos infernos e o dos homens. Yerma, matando o marido, matou seu filho, que poderia ter, antes mesmo de ele nascer. Psiquê desafiou a Grande Mãe, e descobriu, enfrentando os sofrimentos e obstáculos que lhe foram impostos, os segredos do masculino, numa caminhada em que conciliou anima e animus no seu corpo de mulher.  Eros nunca mais foi o mesmo depois de se encontrar com Psiquê. Homem e mulher se fizeram e nasceu Volúpia. 

Imagem: Google images (cartaz da apresentação a ópera Yerma, de Villa-Lobos em Manaus, 2010).

Missa das onze e meia


"Depois de dizer isso, Jesus foi levado ao céu, à vista deles. Uma nuvem o encobriu, de forma que seus olhos não podiam mais vê-lo", Atos (I, 9).

Uma semana exata


Só agora me dei conta: uma semana sem colar nada aqui neste espaço. O que me segurou foram as fatias do bolo de Maria, que o cortara em "longas fatias muito finas". Ver o bolo até que é fácil, pois ele se oferece aos olhos, mesmo aos mais desatentos. As fatias é que são elas. Mais ainda os cortes, as fronteiras. A fronteira é o que faz o diferente estar o mais próximo possível. Quase igual, quase o mesmo. Um entre-lugar, uma sobrecoisa que exige. Quero pensar ainda, numa espécie de resistência, que a fronteira é exigência da gigantização, das imagens diurnas, de ascenção narcisista e megalomaníaca, que já é o seu contrário. Não serve para o mundo subatômico. Quase todo o espaço do universo é composto pelo vazio, pelo nada. No macro e no micro, que tudo é o mesmo até onde se sabe. O espaço está cheio de vazios. Vazios de imaginação material. De novo Narciso. Só agora me dei conta: uma missa encontrou a outra, neste domingo da Ascensão.

Imagem: Google images (desenho de Poty).