domingo, 31 de março de 2013

O que tem de lá



Queria fotografar o silêncio da minha rua, para aprisioná-lo. Para que ele parasse de se movimentar e de colocar em movimento tantas imagens minhas. Eu queria o silêncio da minha rua no ponto mais alto da colina. Lá, onde pequenos movimentos não pudessem sobressaltar o coração dos meus amorosos cães. O silêncio da minha rua faz menos ruído que este “comboio de cordas”, que também tenho.

















Desejo a todos, e a todas, uma feliz páscoa.


Textos e imagens: Gilson.


 

domingo, 24 de março de 2013

Uma nota só



São cinco da manhã.
Tarde já, mas estou à frente do sol.

Sigo viagem, eu e todos os meus espaços vividos,
anjos e demônios, sonhos, devaneios e talvez delírios, por que não?!

Sei que estou sozinho e sei que não estou sozinho.
Chove muito levemente, algo que o sol talvez interrompa logo.

Outra quase certeza: falarei sozinho muitas vezes...
Chamarei alguém, pelo nome, muitas vezes...

Serra das Araras-MG sob chuva

Serra das Araras-MG sob chuva

Texto e imagens: Gilson. 


 

sábado, 23 de março de 2013

Estoriazinhas I

Dona Lina, de batismo Lindalva de Souza Pereira, é minha vizinha, pessoa muito querida, extremamente simpática, atenciosa e que completou ontem 70 anos. Está “firme sobre os calcanhares”, como ela mesma diz. Os olhinhos miúdos e espertos comprovam a informação e ontem os amigos e parentes se reuniram para celebrar o aniversário dela.

Convidado, meio acanhado, sem ânimo, assim mesmo eu fui.

Eu tinha em casa, herança de minha avó paterna, um pequeno crucifixo de prata, pequeno, mas bonito e bem conservado. Era uma cruz simples, mas trabalhada por mãos hábeis e também antigas. Bastou que eu o esfregasse numa flanela e brilhou como se tivesse sido feito anteontem. Impôs-se como peça de arte. Engenhosa. Comprar mesmo eu só comprei o colarzinho, também de prata, e fininho por conta do dinheiro curto, e que tinha o objetivo de acompanhar o pingente, evitando, assim, nos meus cálculos, a explicação da história do presente de minha avó, essas coisas que podem demorar e causar desconforto.

Pensei: vou mais cedo e, com uma desculpa qualquer, posso voltar para o meu canto assim que os convidados começarem a chegar. Assim foi. Assim fui. Quando bati e fui recebido por seu Edson, o velho marido, pude perceber que estavam ainda na correria dos preparativos. Pensei de novo: ótimo. Agradecendo a recepção de seu Edson, já adiantei minha necessidade de não me demorar, muito trabalho, etc. Foi quando dona Lina me viu e veio. Abraçamo-nos forte , segurei seu rosto entre as mãos e agradeci por estar ali, por ter me convidado, essas coisas. Ela quis que eu entrasse, me sentasse, tomasse um refrigerante... Eu tirei do bolso o velho crucifixo, que nem mesmo havia embrulhado. Apenas abri a mão e disse que era pra ela, “uma lembrança”, e eu vi a confusão tomar conta de seus olhinhos, que não sabiam se choravam ou sorriam. Ou era eu quem não sabia. Ela apertou foi o presente na mão, depois levou-o ao peito e depois o beijou, perguntando se poderia me contar uma história antiga.

− Claro que sim, dona Lina – e nos sentamos num banquinho de madeira. Seu Edson nos acompanhou e percebi que muitos nos olhavam de longe.

− Meu filho, quando eu era muito pequena, quase criança de colo, fui abandonada pelos meus pais, eu e meus outros três irmãos. Meus pais se separaram por causa que ele bebia muito e minha mãe só suportou aquilo até onde foi capaz. Éramos muito pobres, muito mais que hoje. Cada um de nós foi para num canto. Meu pai era caseiro numa chácara e os patrões dele ficaram com o mais velho, na verdade o único menino. Ficamos, as três irmãs, com uma tia, imagina uma escadinha. Minha tinha não podia cuidar de todas, já tinha um bebê pequeno em casa. Eu, a mais nova fui para a casa um casal amigo da família, e que me batizaram e passaram ser os meus padrinhos. O meu padrinho criava galinhas para vender. O meu irmão mais velho morreu, conforme me contaram depois, por causa de uma briga. Ele era muito revoltado. Nem tinha quinze anos, coitado, não viveu nada. Minhas duas irmãs moravam em casas melhores, mas eu fiquei muito tempo com meus padrinhos num barracão improvisado, numa área invadida, próximo do Ribeirão da Lapinha. Meus pais retomaram a vida deles, juntos, e nos pediram desculpas. Eu fui a única que perdoei eles. Eu gostava dos meus pais, não tinha raiva deles. Minhas irmãs, mais velhas, não quiseram saber. Um dia desmancharam, à noite, o barracão, com polícia e tudo, e fomos morar numa casa emprestada, que ficava perto daqui. Foi nessa casa, eu tinha oito anos e já estudava e ajudava na arrumação de tudo. Uma tarde de domingo, vi meu padrinho chegando, sorrindo e dizendo que tudo ia ficar bem, que eu não me preocupasse. Passou pela portinhola de madeira, me abraçou e me disse: “Olha, é pra você, para proteger você por toa a sua vida”. Sabe o que era? Um crucifixo e um colarzinho iguais a esse que você acaba de me dar, mas simples, conforme as condições dele. Durante quatro anos não me apartei desse presente. Era só me sentir mais angustiada, e me agarrava com ele, chorando baixinho. E sempre me sentia melhor, confiante. Até que a minha prima, bem mais velha que eu, filha do irmão do meu padrinho, pediu para ver meu crucifixo, que ela achava lindo. Tirou-o do colar e pegou, foi saindo com ele e nunca mais me entregava. Reclamei com ela e com todos da casa até que ela disse, olhe só, que uma das galinhas do padrinho havia comido o crucifixo. Acreditei e passei muitos dias, não sei quantos, observando aquelas galinhas todas, tentando adivinhar qual delas estava com minha lembrancinha. Com nenhuma, é claro. Tá bom, já falei demais. Vem jantar. Mas olha, pra mim, eu digo que você me devolveu meu crucifixo.

Ela terminou sua história antiga e eu fui jantar, e logo fui embora. No caminho fui pensando que talvez tivesse sido melhor ter dito logo de início que o pequeno pingente tinha sido de minha avó.







Imagem: Goiânia, longe (Foto: Gilson).

terça-feira, 19 de março de 2013

Arequipa não é aqui



Nesta noite de segunda para terça-feira choveu depois de quase vinte dias de um calor e de um sol incomuns para esta época do ano. Chuva forte, de muita água e boa. Para usar palavras de minha mãe: “chuva abençoada, mansinha...”.

Amanheceu um dia lindo: nublado, cinzento, embaçado...

Há muito tempo, na minha adolescência, li Conversa na Catedral, de Mário Vargas Llosa, então apenas um bom contador de estórias, como a ele se referiu certa vez o mano Caetano. Apenas lá pela página 300 é que descobri que a catedral, espaço da conversa dos dois amigos, Santiago Zavala e Ambrósio, era na verdade um bar de quinta e não uma digna Igreja. Além do mais, eu observava pouco a dureza da crítica política para admirar, antes, os fios do novelo da construção da narrativa e os espaços mais abertos de Arequipa, cidade vizinha de Lima. Comigo ficou para sempre o céu nublado de Arequipa.

Não conheço pessoalmente o fog londrino nem o céu cinzento de Arequipa, no Peru, e que me foi apresentado por Llosa.

O fato é que me identifico com esta atmosfera em que não se pode ver longe. Parece-me mais compatível com minhas possibilidades como ser humano. O sol me faz crer que vejo o que me engana. O carro de Apolo é a ilusão das ilusões (e nele não pode estar Cristo, como queria Dante). Se tivesse sido consultado, teria sugerido a Llosa que mudasse o nome do amigo de Zavalita para Dionísio (e este seria, tanto tempo depois, o dono do Bar Catedral).








Imagens: Goiânia, hoje de manhã (Gilson).