sábado, 31 de dezembro de 2011

Domá da Conceição

Talvez não seja o último de 2011, mas bem poderia ser.

Anjo Alecrim from Camera3 Video Digital on Vimeo.

Poço Fundo, Minas Gerais

Nome de cidade muito adequado para o meu estado de espírito. Poderia enterrar 2011 aqui. Mas não, vou procurar outro pouso. À parte as brincadeiras, Poço Fundo é uma cidadezinha das mais simpáticas. A entrada me lembrou muros de cidades ancestrais, fortificadas, mas em verdade compõe uma das mais belas recepções que tive nesses lugares por onde andei. Pura simpatia, Poço Fundo-MG.







Além do mais, havia muitas nuvens no céu do mundo, digo, no céu do poço fundo de Minas. Fugi da competição.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Senhor João Pedro





João Pedro é um jovem senhor de uns 65 anos de idade e que trabalha como varredor numa empresa terceirizada que presta serviços à instituição em que eu mesmo trabalho. Costumo conversar com Seu João Pedro nos meus intervalos para fumar. Um dia ele me contou um pedaço de sua história: Nasceu em Monte Belo-MG, de onde saiu com 11 anos para ajudar a família, cortando cana, primeiro em Orlândia-SP e depois em Goianésia-GO. Nunca mais retornou à sua terra natal, nem fotografia nenhuma jamais viu de lá. Disse a ele que um dia, quando eu estivesse de férias e andando por aqueles lados, iria até Monte Belo, faria registros e levaria para ele. Acho que cumpri, pelo menos em parte, o compromisso, visitei a vila onde Seu João Pedro nasceu e estou levando lembranças para ele. As fotografias e filmes acho que adiantarão pouco, pois não sei qual é o seu nível de momória do lugar, nem o quanto a cidade mudou em mais de meio século. Deve estar para ele irreconhecível.

Rumo de Machado-MG



Sem minha amada do lado sigo sozinho ao encontro de mim mesmo (o que venho tentando fazer todos os dias, é verdade), mas agora mudando de lugar: vou pra Minas Gerais, pra Machado e suas bandinhas de musicais. Mais que isso, vou para o fundo do Brasil, para as montanhas de Minas, as igrejas de Minas, para o carvão e amoníaco, é pra lá que eu vou. Já passei por Campo Florido e parei no Posto Floridão, como fizemos naquele janeiro de 2010, quando estávamos a caminho de Búzios-RJ. O posto ainda existe, mas sofreu bela reforma e nem lembra mais a aparência fantasmagórica que nos fez rir diante dele. Substituí meus olhos embaçados pelos da lente da máquina, para reviver este espaço vivido.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

See you, Cheetah...

O New York Times anunciou ontem a declaração de diretora de reserva animal na Flórida, dando conta da morte de uma chipanzé de cerca de 80 anos de vida e que teria participado nos anos 30 de filmes ao lado de Johnny Weissmuller. Tratar-se-ia de ninguém menos que Cheetah, companheira inseparável de Tarzan, antes da chegada de Jane, e mesmo depois. Há toda uma discussão acerca da identidade do animal, mas a notícia me levou para tempos em que, para mim, os nomes ainda eram mágicos: Cheetah é um deles. Para ver  a notícia em seu contexto: http://artsbeat.blogs.nytimes.com/2011/12/28/cheetah-chimpanzee-in-tarzan-movies-has-died/ e http://artsbeat.blogs.nytimes.com/2011/12/29/in-cheetah-mystery-florida-sanctuary-stands-by-its-chimp/?partner=rss&emc=rss.

2012

Na mensagem na qual recebi o vídeo, além dos desejos de feliz 2012, havia a lembrança de se tratar de um ano bissexto: um dia a mais para fazer algo de bom.

Viagem


A Chuva tece

Acabo de fechar a janela, por onde observava a chuva.
Noite alta.

Que lugar é esse, que não pode ser um espaço imaginário?
Madrugada só.

A chuva insiste em refazer tudo que é vida na terra.
Meu não lugar eu.

Sombras não dizem nada e não se afastam nem reclamam.
Que sentem?

Tudo se move enquanto todos dormem seus sonos.
Com que sonham?

Chovia muito naquela manhã em Serra das Araras.
Onde mais?

Fazer colagem não deveria fazer sentido ou sim.
Sim.

Se tudo que se pode querer é ter alguém do lado
Com quem...

Mesmo em silêncio ao som da chuva se possa
Confirmar a flecha...

A sagrada dor da flecha daquele silêncio imenso
Da lágrima.

Alguma nota que fugiu da música da chuva que cai
Lá fora.

Lá fora a chuva que tudo refaz sempre e por dever
Aqui dentro a esperança pede água.

Um mês sem ver TV


Ontem à noite completei um período exato de 30 dias sem ver televisão, sem nem mesmo ligá-la pra ver se estava funcionando. É verdade que já vinha me afastando dessa ferramenta fabulosa há algum tempo, assistindo a algumas coisas e só de vez em quando. Nos últimos meses, só mesmo fetebol. Então, impacto nenhum, diferença alguma. Chego a estar em locais de espera, em que há uma televisão ligada e não olho; pego um papel qualquer e começo a ler. Duro é se livrar daquele som. Há gente sensata que tira o som e deixa aquelas legendas para quem quiser saber o que está sendo dito. A mim não interessa nem ver nem ouvir. Ouço rádio todo dia, invariavelmente. O meu aparelho de TV foi um presente de pessoa muito amada, a mulher da minha vida, e estará comigo até que tudo se cumpra. Eu me refiro é à programação absurda e irresponsável, de um lado; de outro, à absoluta falta de tempo para ver um jornal, por exemplo. Parar de fumar que é bom, nada, mas a TV se foi. Não tenho razões para ligá-la.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Segisberto Jéia e Riobaldo

Aproximando-me dia após dia da prosa de Guimarães Rosa (peço desculpas pela rima não maliciosa, bom... Deixa pra lá), mais me dou conta de entrar em contato com dois aspectos dos quais, creio, não poderei escapar. Um deles é a musicalidade, seja pela presença viva de cantadores, cantigas, canções, ladainhas, seja pelo andamento poético do texto narrativo. Benedito Nunes, em ensaio pioneiro sobre o "Cara-de-Bronze", inicialmente parte de Corpo de Baile e depois publicado no volume No Urubuquaquá, no Pinhén, informa que o primeiro nome desse conto era "Poesia". O poeta Pedro Xisto, também muito cedo percebeu essa presença. O próprio Guimarães Rosa o confirma, em correspondência com seu tradutor para o italiano, o Professor Edoardo Bizarri: "o Grivo foi ao Maranhão buscar... Poesia", para o velho Cara-de-Bronze. O velho Segisberto, meticulosamente, escolheu o vaqueiro Grivo para a missão. O outro aspecto é a religiosidade, seja pela presença ostensiva de rezadeiras, pastores, padres, intensos debates acerca da existência ou não do Diabo, seja pela modulação quase mística do enquadramento dos casos. Esses dois aspectos, em conjunto, chegam a reduzir a história narrada, limitando fatos e eventos, desacelerando o desenrolar das narrativa. Fazendo-as parecer "burro no arenoso". Isso quando não há propriamente suspensão do contar, quando o narrador se desenvereda do curso regular que seguia e se esparrama em longas digressões, analepses e prolepses num quase emaranhado de impressões que assumem alta relevância. Em "Cara-de-Bronze", o velho, no interior da casa grande da fazenda, quase paralisado exteriormente, tem o espírito estalando, mas não quer saberde história, quer ficção, poesia, canto, invenção. Seu corpo cansado precisava livrar da paralisia da alma, o que mais o perturbava, por isso escolheu o Grivo para ir ao Maranhão e, na viagem, juntar o máximo de impressões que pudesse. Na verdade, quanto mais o Grivo mentisse ao voltar, tanto melhor. Em Grande Sertão: veredas, Riobaldo tem sua vida praticamente toda traçada nas palavras e nos sons da Canção de Siruiz, "o Senhor se alembra?" No meio de sua conversa interminável, também ele, no meio da travessia leterária, interrompe a narrativa de mais de 600 páginas, para um inacreditável parágrafo de quatro páginas, e no centro está a canção de Siruiz. Se parte das paredes dos labirintos desses dois personagens são feitas de música de reza, estamos próximos do que Gabriela Reinaldo chama de "Cantiga de fechar os olhos", referindo-se a GS:V. Como se sabe, o primeiro livro de Rosa foi composto de poesias. Livro negado, este conjunto de poemas ganhou, sob pseudônimo, o primeiro prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras de 1936, para nunca mais voltar à forma própria, ou clássica, do poema. Sua poesia se espalhou na prosa. Seu magma assumiu novas formas. No discurso de recebimento do prêmio em 1937, na Academia, lembrou que o "poeta não cita: canta" e que recebia o prêmio como "um menino que depõe seu brinquedo na superfície translúcida de uma água, para a qual a serenidade não é a estagnação, e cujo briljo nada rouba à projeção da profundidade". O Magma vinha da profundidade, mas como forma ficou aí. Só foi publicado 30 anos após a morte do autor. Das mesmas profundezas, porém, temos todo o que veio depois, e com Riobaldo, já sabemos que "para muitas coisas no mundo faltam nomes", mas o mundo é muito "cantável".

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Fugas II - Os jesuítas e a corda bamba

Vejamos:

Pe. Manoel da Nóbrega e a "dívida" com os mercadores negreiros
"A todos esses senhores [negreiros] devemos muito, pelo muito amor que nos têm, posto que o de alguns seja servil" (Cartas do Brasil, 1549)

Pe. Manoel da Nóbrega e a proposta de "sujeição moderada".
"Os Índios são capazes de se converter em direito, porque são homens, e de facto, porque já muitos se converteram. Mas importa criar condições extrínsecas aos Índios, aptas a facilitar a conversão: uma da parte dos missionários, que deviam tender cada vez mais à perfeição de evangelizadores; outra da parte dos Índios, uma sujeição moderada" (Diálogo sobre a conversão do gentio, Bahia, 1556-57)

Pe. José de Anchieta e o "bom pastor" que conduz o rebanho ao Rei
"Não foi sem causa escolhido/de Deus, por nosso pastor!/Bem o mostra no amor/e zelo tão incendido//Para pagar tal amor/que faremos, companheiros?/Que sejamos bons cordeiros,/pois temos tão bom pastor" ("Ao Padre Costa", em Poesias completas)

Pe. José de Anchieta e sua fé genuína
"Ó que pão, ó que comida, /ó que divino manjar/se nos dá no santo altar/cada dia!" ("Do santíssimo sacramento", em Poesias completas)

Pe. José de Anchieta criou diabos
"Diabo 1: - Não, envergonhando-se delas, na verdade,/e escondendo-as, não as fizeste sair contigo!/Bem com os meus olhos/vi que tu as escondeste./Apanha-o, Morupiaruera!/Ajuda-o, Mboiuçu!/Queima-o, Tatapitera!" ("Na aldeia de Guaraparim", em Teatro)

Pe. Antônio Vieira, o esgrimista: o "mimo" dos paulistas
"O mimo significa favor, benevolência, ou graça, e não justiça ou obrigação; e bastará para mimo de um índio uma faca, ou uma fita vermelha. Isto se reputa por paga suficiente, dado de quando em quando, que em outra parte se explica por uma ou duas vezes ao ano" ("Voto do Pe. Vieira sobre as dúvidas dos moradores de São Paulo acerca da administração dos índios", em Escritos históricos e políticos)

Pe. Antônio Vieira, o pré-economista (o economista será Antonil)
"O remédio temido, ou chamado perigoso, são duas Companhias mercantis, Oriental uma, e outra Ocidental, cujas frotas poderosamente armadas tragam seguras contra Holanda as drogas da Índia e do Brasil. E Portugal com as mesmas drogas tenha todos os anos os cabedais necessários para sustentar a guerra interior de Castela, que não pode deixar de durar alguns. Este é o remédio por todas as suas circunstâncias não só aprovado, mas admirado das nações mais políticas da Europa, excepto somente a portuguesa, na qual a experiência de serem mal reputados na Fé alguns de seus comerciantes, não a união das pessoas, mas a mistura do dinheiro menos cristão com o católico, faz suspeitoso todo o mesmo remédio, e por isso perigoso" ("Sermão de São Roque", pregado na Capela Real em 1644, in Sermões).

As ideias estavam fora do lugar quando aqui chegaram. Aqui, aqui estava tudo certo.
Ouvi outro dia uma ideia esquisita: dava conta de que os nativos da terra não "viram" os invasores, pois, para "ver", primeiro é preciso que uma imagem da coisa vista esteja já instalada no cérebro de quem supostamente vê. Nossos primeiros habitantes a fazer contato com os europeus teriam visto qualquer coisa menos o que realmente era. Talvez nunca tenham sabido, esses do primeiro contato, com quem conversaram tantas tardes, olhando o mar.

Para a série Fugas, ainda J.S. Bach:

Zabumbas e mais

Aí, tá vendo?

Dialética da formação

Pela leitura do romance brasileiro é possível saber o que se formou? O que é o que chamamos Brasil? É possível ver traços dessa formação num samba? Vamos a algumas ideias e depois a um exemplo:
a) Os heróis de Senhora, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de O Ateneu, de Macunaíma e de Grande Sertão: Veredas manifestam um traço comum, talvez o mais saliente: são, todos eles, muito cambiantes e alguns deles o são de modo muito espetacular, até mesmo algo desconcertante, são volúveis (Prof. José Antonio Pasta, "Volubilidade e ideia fixa", em Sinal de Menos, Ano 2, nr 4, 2010);
b) Se observarmos um pouco mais nossas personagens infinitamente movediças, vê-se que, ao lado desse traço de mutação incessante, elas são sempre marcadas por um outro traço que, junto ao primeiro, parece paradoxal: elas são todas portadoras de uma ideia fixa, cruel e implacável (Prof. José Antonio Pasta, "Volubilidade e ideia fixa", em Sinal de Menos, Ano 2, nr 4, 2010);
c) Aí a novidade: adotadas as ideias e razões europeias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificação, nominalmente objetiva, para o momento de arbítrio que é da natureza do favor (Prof. Roberto Schwarz, "As ideias fora do lugar", em Ao Vencedor as Batatas, São Paulo, Duas Cidades, 1992.

Antonico
(Ismael Silva)

Ô Antonico, vou lhe pedir um favor
Que só depende da sua boa vontade
É necessário uma viração pro Nestor
Que está vivendo em grande dificuldade

Ele está mesmo dançando na corda bamba
Ele é aquele que na escola de samba
Toca cuíca, toca surdo e tamborim
Faça por ele como se fosse por mim

Até muamba já fizeram pro rapaz
Porque no samba ninguém faz o que ele faz
Mas hei de vê-lo muito bem, se Deus quiser
E agradeço pelo que você fizer

Pois bem. Letra e samba de primeira grandeza. E que mais temos? Três personagens e uma espécie de "bilhete" entre eles: a) quem escreve, cujo nome é o único não revelado; b) aquele a quem se destina o bilhete, o Antonico, que dá nome ao samba e c) o Nestor (por quem se pede ajuda). Alguns dados: Nestor está na "corda bamba" mas esta parece ser sua condição "natural", pois na escola "é aquele que toca cuíca, toca surdo e tamborim", ou seja, toca o que tiver que tocar. Faz o que tiver que fazer. Há uma hierarquia clara entre os personagens e não há dúvida sobre Nestor constituir o chão. Entre os correspondentes, esta hierarquia está invertida: quem pede, na verdade, manda: a) "só depende da sua vontade", o que equivale a uma primeira ameaça (algo mais ou menos como "se você não fizer terá sido porque não quis fazer e então responderá por isso") e b) "faça por ele como se fosse por mim", que significa que negar o "favor" implicará em responder diretamente a quem fez o "pedido". As coisas devem ser resolvidas entre Antonico e Nestor, por ordem do inominado poder. Quem está na corda bamba agora é, de fato, Antonico, que deve providenciar a "viração" para o Nestor, se quiser manter sua boa relação com o "sem nome" mandador. Isso está longe de ser um "pedido" e muito mais perto da "cordialidade" brasileira, como a demonstrou Sérgio B. de Holanda. O "trabalho feito", expresso na forma "muamba" e "se Deus quiser" compõem um quadro mínimo de crenças e atenuações. A delicadeza do pedido de favor traz uma ordem velada, esconde a relação de autoridade, que, inclusive, dispensa os nomes dos poderosos. Enfim, num inocente e bom samba... Com cuíca em fuga... Eis o Brasil, ao menos em parte.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Fugas

Aceitando a ideia de que a malandragem (no sentido dado por Antonio Candido, no estudo clássico sobre o Memórias de um sargento de milícias) é traço bastante característico da brasilidade e que ela pode ser vista tanto no passo do samba quanto no compasso do ronco da cuíca, inicio uma série de postagens que vou chamar de fugas. Considero a fuga, então, uma expressão do brasileiro. Começo, lógico, por Bach, não podia ser outro, senão eu seria menos brasileiro que ele.

J.S. Bach, Fugue No. 2 in C minor, arranged and played by Adam Ben Ezra on the Upright Bass, Oud, Clarinet & Upright Percussion - Ethnic Style!

Fugue from adam ben ezra on Vimeo.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Scarborough fair

Eu só mudaria, se esses meninos me dessem licença, o tempo do verbo, pois não acredito no tempo, e ficaria assim: diga a ela que ela ainda é meu verdadeiro amor. She still is true love of mine. Não importa o que ela faça, não tem missões a cumprir. Sou eu quem decidiu isso.

Missas das onze e meia

Platão e Aristóteles, em detalhe de Escola em Atenas, de Rafael
25 de dezembro – Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo
“No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus. No princípio estava ela com Deus. Tudo foi feito por ela, e sem ela nada se fez de tudo o que foi feito” (João 1, 1-3)

18 de dezembro – 4º Domingo do Advento
“(...) Concedo-te uma vida tranquila, livrando-te de todos os teus inimigos. E o Senhor te anuncia que te fará uma casa” (Samuel 7, 11)

11 de dezembro – 3º Domingo do Advento
“Rezai sem cessar. Dai graças em todas as circunstâncias” (Tessalonicenses 5, 18)

04 de dezembro – 2º  Domingo do Advento
“Preparai no deserto o caminho do Senhor, aplainai na solidão a entrada de nosso Deus (Isaías 40, 3)

27 de novembro – 1º Domingo do Advento
“Cuidado! Ficai atentos, porque não sabeis quando chegará o momento” (Marcos 13, 33)

20 de novembro – Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo
“Vinde, benditos de meu Pai! Recebei como herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome e me destes de comer; eu estava com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me recebestes em casa; eu estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar” (Mateus 25, 34-36)

13 de novembro – 33º Domingo do Tempo Comum
“Uma mulher forte, quem a encontrará? Ela vale muito mais do que as jóias” (Provérbios 31, 10)

06 de novembro – 32º Domingo do Tempo Comum (Todos os Santos)
“Bem aventurados os mansos, porque possuirão a terra” (Mateus 5, 5)

30 de outubro – 31º Domingo do Tempo Comum
“Fiz calar e sossegar a minha alma” (Salmo 130(131), 2)

23 de outubro – 30º Domingo do Tempo Comum (Dia Mundial das Missões)
“Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” (...) “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento! Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: amarás o teu  próximo como a ti mesmo. Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (Mateus 22, 36-40)


16 de outubro – 29º Domingo do Tempo Comum
”Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22, 21)

09 de outubro – 28º Domingo do Tempo Comum
“Tudo posso naquele que me dá força” (Filipenses 4, 13)

02 de outubro – 27º Domingo do Tempo Comum
“Quanto ao mais, irmãos, ocupai-vos com tudo o que é verdadeiro, respeitável, justo, puro, amável, honroso, tudo o que é virtude ou de qualquer modo mereça louvor” (Filipenses 4, 8)

25 de setembro – 26º Domingo do Tempo Comum
“Arrependendo-se de todos os seus pecados, com certeza viverá; não morrerá” (Ezequiel 18, 28)

18 de setembro = 25º Domingo do Tempo Comum
“Assim, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos (Mateus 26, 16ª)

11 de setembro – 24º Domingo do Tempo Comum
“O rancor e a raiva são coisas detestáveis” (Eclesiástico 27, 33)

Yerma em sua porta



Introdução

Aceitamos que, preliminarmente, a obra de Federico García Lorca (1898-1936) está marcada pela relação do poeta com a terra. Especialmente com a região da Andaluzia, na Espanha mediterrânica, onde, no início do século XX, viveu praticamente toda sua curta vida. Lorca nasceu na cidade de Puerto Vaqueros, e com nove anos foi morar em Valderrubio. Depois, em 1926, a família mudou-se para Huerta de San Vicente, em Granada. O próprio artista dá testemunho da importância dessa relação com a terra, sempre presente em sua obra: “Esse mi primer assombro artístico está unido a la tierra. (...) Mis primeras emociones están ligadas a la tierra y a los trabajos del campo” (LORCA, 1991).

A matéria com que Garcia Lorca dá forma à sua produção dramática é a mesma de sua atividade poética, ou seja, a que recolhe de uma região de fronteira, sinalizada imediatamente pela geografia. A hipótese com que se trabalha neste estudo é a de que o poema trágico Yerma seja uma produção cultural de fronteira, de acordo com as perspectivas de análise propostas por Homi H. Bhabha (1998) e Edward W. Said (2007). Além disso, considera-se que essa obra de Lorca reflita ainda o imaginário do povo andaluz e do próprio poeta, revelando trajetórias de imagens arquetípicas, cuja síntese será aqui tentada pelo instrumental teórico proposto especialmente por Gilbert Durand (2002).

O objetivo aqui é o de explorar as possibilidades de leitura oferecidas pelo texto da peça Yerma a partir do pressuposto de ter sido construída numa paisagem que contemple a existência de três fronteiras: espacial, psíquica e estética. A primeira é aquela revelada na cultura do povo andaluz, matéria de Lorca. A fronteira do psicologismo constitui o fundo da persona de Yerma, no processo de desenvolvimento de seu caráter, um dos objetivos declarados do poeta. Finalmente a da Estética, que desvela as diferenças de níveis dos gêneros lírico e dramático e dá o “andamento novo” da tragédia-poema, ousadia de Lorca e seu outro objetivo manifesto. A partir dessas considerações, a abordagem desse texto de Lorca deve levar em conta, em primeiro lugar, a elaboração dos limites e alcances das questões fronteiriças e de identidade cultural. Depois, será preciso analisar o percurso do desenvolvimento do caráter da personagem Yerma e, por fim, propor possíveis discussões sobre gêneros literários. Esses aspectos vinculam-se, de uma ou outra forma, à perspectiva de fronteira cultural, simbólica e discursiva. Assim, vão aparecer em Yerma  sinais de hibridismos provocadores, índices do limite e de tragédia.

O problema das fronteiras

A questão da fronteira geográfica é das mais difíceis de serem apresentadas, seja pelo calor das atuais discussões pós-colonialistas, seja pela sua própria dimensão e pelas inúmeras implicações de ordem disciplinar no campo da ciência. É muito provável que, ao final, o problema da fronteira geográfica, mais especificamente, mais afeito aos estudos da Sociologia, da Antropologia e mesmo da própria Geografia, não chegue a ser adequadamente explorado no presente artigo. De qualquer maneira, para a questão geográfica trata-se de situar a região andaluza como uma fronteira cultural e simbólica entre o que se convencionou chamar de Ocidente e Oriente. Considerado dessa forma, o tema, neste âmbito, será apenas esboçado aqui, para fins específicos, sem maiores aprofundamentos nos estudos colonialistas ou culturais, assumindo-se a Andaluzia do início do século XX como uma fronteira espaço-temporal.

Importante para o que se pretende apresentar para discussão são as relações de limite, as possibilidades de imbricações de valores culturais, sobreposições de imagens, símbolos e imaginários que Yerma revela. Sugerimos que o texto deve ser lido não como se olha para um horizonte de terras demarcadas, horizontalmente fixadas e superficialmente construídas. A perspectiva é outra, ou seja, aquela das verticalidades sem limites claros e com desejos de profundidade. Assim, pretendemos estar nos aproximando da perspectiva do autor: “és imprescindible ser uno y ser mil para sentir las cosas em todos sus matices. Hay que  ser religioso y  profano. Reunir el misticismo de una severa catedral gótica con la maravilla de la Grécia pagana” (LORCA, 1991). Pensado dessa forma o espaço, sempre cultural e simbólico, reunindo aparentes opostos, destina todas as suas tentativas de divisão a mero convencionalismo de ordem circunstancial ou oportunista.

Para Said (2007) o “Ocidente”, tanto quanto o “Oriente”, são ideias ou construções discursivas, sempre ideológicas, que têm “uma história e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e presença (...). As duas entidades geográficas, portanto, sustentam e, em certa medida, refletem uma à outra”. Este estudo entende que o que separa essas duas instâncias culturais é extremamente difícil de definir, contudo uma das formas em que a divisão está cristalizada orbita o conceito de fronteira. Destaque-se, ainda com Said (2007), que novas arquiteturas se apresentam na perspectiva de “repensar e reformular as experiências históricas outrora baseadas na separação geográfica dos povos e das culturas”. O autor cita algumas obras para ele especialmente relevantes e preocupadas com tema: Amiel Alcalay, com seu Além de árabes e judeus: refazendo a cultura do levante, Paul Gilroy, de O negro atlântico: modernidade e dupla consciência e Moira Ferguson, com Sujeito e outros: escritoras inglesas e escravidão colonial. Esses autores e obras apresentam novas maneiras de visualizar relações consolidadas para os conjuntos judeu/árabe, Europa/África e questões de gênero/relações coloniais inglesas na África, respectivamente. Estaríamos aqui bem próximos do que se poderia chamar de regime do limite, das definições do ser e do ser outro. Ou, dito de outra maneira, o de poder ser múltiplos, com a individuação passando a ser considerada como um problema de gradação.

Para Lorca, a peça Yerma é o desenvolvimento do caráter de uma mulher estéril. Nas palavras do poeta, Yerma “Es sobre todas las cosas, la imagen de la fecundididad castigada a la esterilidad. Un alma a que se cebó el Destino señalada para víctima de lo infecundo” (LORCA, 1991). Garcia Lorca sinaliza claramente para a tragédia grega, conforme analisada por Aristóteles. Para a o caso presente, a imitação das ações de pessoas comuns, elevadas quanto ao caráter, marcadas pelo Destino, ou seja, destinadas ao fim trágico, ao sacrifício. Por mais humanista, em certo sentido, que tenha sido Sófocles ao arranjar as ações em Édipo, o personagem não escapa do lhe está destinado. Queremos dizer que, mesmo que todas as ações de Édipo sejam direcionadas a escapar daquilo que lhe prometiam os oráculos, ao final ele encontrará o que lhe estava reservado. A fórmula, se podemos assim chamar, de Aristóteles para a tragédia está presente em Yerma: “a história trágica imita as ações humanas colocadas sob o signo dos sofrimentos das personagens e da piedade até o momento do reconhecimento das personagens entre si ou da conscientização da fonte do mal” (PAVIS, 2001).

O imaginário andaluz presente na obra de Lorca pode ser visualizado de forma muito rica no texto de Yerma, seja na questão moral do patriarcado rural, definindo uma unidade entre a ordenação familiar e as formas de produção da sociedade. Esse espaço é compreendido especialmente pelos personagens masculinos, mas também pela incorporação de valores masculinos pelas mulheres. Pode ser entrevisto no canto das lavadeiras ou ainda na combinação de rituais católicos e pagãos. Todo esse “espaço vivido” (Bachelard, 2003), formou o imaginário pessoal de Garcia Lorca, definindo-o como homem de fronteira, num tempo de construção de imaginários nacionais. Num processo iniciado com o trecento italiano, o homem do final do século XIX e início do século XX experimenta ao mesmo tempo a consolidação do indivíduo burguês, ao mesmo tempo em que todo e qualquer produto pode ser “lido” como mercadoria. A afirmação definitiva dos valores burgueses após a Revolução Industrial e a constituição dos estados nacionais diluem e fortalecem, de forma ambígua, as concepções de pertencimento cultural. Diluem pela ascensão do indivíduo, com as correlatas noções de fantasia da igualdade e da universalidade dos direitos. Fortalecem pelas diversas formas de resistência dos locais da cultura, ou seja, de unidades culturais regionais, que com pesar chamamos aqui de “internas” aos estados nacionais. Por último, o convencionalismo das formulações desconsidera a porosidade das fronteiras.

Yerma é um mergulho nas raízes do povo andaluz, em busca da afirmação de uma identidade, vale dizer, de uma origem, ao mesmo tempo local e universal, tanto para Yerma quanto para o povo de Andaluzia e para aquele que os traduz:

Por eso hay en mi vida un complejo agrario, que llamarían los psicoanalistas. Sin este amor a la tierra, no hubiera podido escribir Bodas de sangre. Y no hubiera tampoco empezado la obra próxima: Yerma. En la tierra encuentro una profunda sugestión de pobreza. Y amo la pobreza por sobre todas las cosas. No la pobreza sórdida y hambrienta, sino la pobreza bienaventurada, simple, humilde, con el pan moreno (LORCA, 1991).

Com declarações como essas, feitas a um jornal de Madri, Garcia Lorca afirma o seu amor pela terra andaluza, com o que isso possa significar. Para nós significa que o autor tem na sua terra e no imaginário de seu povo o primeiro dado de sua existência. Sob esse aspecto, toda a produção artística de Lorca de algum modo reflete a proximidade do “outro”, representado pela presença do imaginário oriental na sua obra, no seu povo e no próprio artista. O Oriente não é apenas um vizinho com que se possa dialogar. O artista menciona em carta ao seu irmão Francisco, um “barroco oriental que tanto dice de Granada y de toda a Andalucía” (LORCA, 1991). Muito diversamente, na musicalidade, na religião, no moreno da pele e em outros aspectos, o que se quer fora e diferente, habita o imaginário andaluz e impõe o diálogo, como se vê em Yerma.

Os espaços em Yerma

Se a fronteira é o espaço, de toda forma imaginário, que separa paisagens convencionalmente físicas e políticas, mas sempre simbólicas, é também o ponto que está mais próximo do diferente, e, assim, mais sujeito a ressonâncias, imbricações e interferências mútuas. Assim, a “invenção” da fronteira pode ser compreendida como um esforço de afirmação diante daquilo em que não se reconhece, lançando para o “outro” o que não deseja como elemento de sua constituição. Esse esforço de fixação das identidades, sejam elas nacionais, regionais ou individuais, ocorre numa espécie de jogo de puro/impuro, desenvolvido/atrasado, civilizado/bárbaro, dentre muitas outras polarizações, sempre forçadas. O ponto máximo desse tipo de percurso em busca obsessiva de afirmação culminaria na constituição de um diferente tratado como “abjeção” (KRISTEVA, 1980). Garcia Lorca não joga esse jogo, contrariamente, o poeta instala Yerma no limite entre a casa e a rua: a porta.

Yerma está dividida em três atos, mas perguntado numa entrevista se a peça estava assim constituída, Lorca nos informa que, antes que em três atos, a peça está dividida em seis quadros:

De estos quadros, tres, los que correspondem a los interiores, tienen um dramatismo reconcentrado, una emoción silenciosa, como reflejo plástico de um tormento espiritual; los otros tres, al recibir color y ambiente natural, ponem luminarias de luz em el tono escuro de la tragedia. En estos no intervienen para nada los protagonistas, y solamente actúan auténticos coros a la manera griega (LORCA, 1991).

Três quadros “dentro” e três quadros “fora”, assim é a arquitetura espacial de Yerma, segundo palavras de seu autor. Separando esses ambientes na observação da obra, verificamos que em dois dos três quadros “interiores” as ações se passam em casa de Yerma e o outro em casa de Dolores. Quanto à mencionada parte destinada à atuação do coro está distribuída em a) cenas no campo, seja o das plantações de Juan, seja o dos pastos de Víctor; b) à beira do riacho, no canto das lavadeiras e, finalmente, c) nos arredores da Casa do Santo, no último quadro. Yerma, todavia, passa grande parte de seu tempo sentada no batente da porta de sua casa, num ponto que une e separa essas duas dimensões de espaço fixadas por Lorca.

Esse esquema espacial e dramático não é suficiente, porém, para afastar definitivamente a presença do estranho, nem é essa a intenção do autor, conforme acreditamos. Talvez valesse a pena recuperar algo da simbologia associada ao número 3, que nos remete à sociabilidade, criatividade e busca pela expressão e pela convivência. Para Johan Heyes (2007) a essa simbologia informa que o 3 “é o resultado do encontro de polaridades, a criação, o filho, a ideia, a expansão através da unificação dos contrários, a completa assimilação de tudo, a interação com o todo”.  Esse autor exemplifica a produtividade dessa significação com exemplos: a trindade cristã, a mitologia egípcia – com Ísis, Osíris e Hórus, a mitologia grega – com Zeus, Demeter e Ares/Pã, Afrodite, Hermes, o hinduísmo, com Brahma, Vishu, Shiva. Outros exemplos poderiam ser encontrados na mitologia romana, na cabala, na astrologia, na concepção humana do tempo – passado, presente, futuro, entre outros. A personagem Yerma está em busca da realização do terceiro, ausente. A personagem é caracterizada por uma moral católica, sufocante e castradora, que a enche de culpa, impede sua realização como mulher e, em decorrência disso, sua realização como mãe. Por outro lado, a filosofia imposta pela moral duplamente patriarcal e machista, advindas das influências das duas culturas, a católica e a islâmica, não impede Yerma de buscar a ajuda de benzedeiras e de ir em romaria à Casa do Santo. Participa, assim, de “liturgias” pagãs, negadas pelo catolicismo, então hegemônico. Lorca joga luz na parte obscura da construção ocidental de um oriente estagnado, congelado no tempo, o mesmo desde sempre. A cultura e os símbolos de outras terras aparecem em Yerma, seja no suposto atraso das práticas econômicas, seja nos estatutos morais quase medievais, seja na convivência de crenças milenares ou na simbologia de sua construção do espaço das ações.

Para Said (2007), o “orientalismo”, ou seja, a “invenção” do Oriente pelo Ocidente consolidou-se no século XX como uma espécie de disciplina universitária. Ainda hoje os doutores das grandes universidades do mundo têm hoje “lugares de fala” privilegiados sobre o Oriente. Essa tradição remonta ao início do século XIX, ou talvez a muito antes, como a que se observa na relação dos Gregos com os povos vizinhos, de que nos dá conta Os Persas, de Eurípedes. O que se poderia chamar de “mito do Oriente” tem como fundamento uma regra fixada inicialmente pelos governos inglês e francês, de que os povos orientais não podiam, em razão de seu estágio civilizatório, expressar-se por si. O resultado, segundo Edward Said, é a produção de um discurso que submete o Oriente à visão do ocidental. Um problema é que, ainda seguindo a argumentação de Said, essa construção discursiva e dominadora, em que pese ser internamente “coerente”, mesmo a palavra “Oriente possui uma grande ressonância cultural no Ocidente (SAID, 2007, p.274). Garcia Lorca, ao mergulhar na cultura de seu povo, revelou essas ressonâncias, articulando-as, trabalhando artisticamente na fronteira simbólica entre esses “dois mundos inventados” pelo discurso hegemônico. Talvez por isso Yerma esteja espacialmente no limite simbólico dos dois “mundos”: a sua porta como fronteira. E ainda, a peça esteja “dividida” em duas partes, cada uma com três quadros, o que pode sugerir a reiteração da necessidade da convivência, ou da união produtiva.

No caso da produção artística de Lorca o “outro” não está apenas do outro lado do Mediterrâneo, mas também nas produções da modernidade que avança, e nos entrelaçamentos dessas instâncias temporais de ordenação de cultura e formas de produção. Para Hauser (2000), ao observamos as configurações e o desenvolvimento histórico de culturas como as do Egito e da Mesopotâmia antigos,

O campesinato prossegue em sua própria existência tradicionalmente definida, independente da incansável azáfama das cidades, em suas aldeias e povoados, dentro dos limites de sua economia doméstica, e, mesmo que sua influência esteja em constante declínio, o espírito de suas tradições ainda é discernível até nas manifestações mais recentes e mais avançadas das culturas urbanas altamente diferenciadas desses países (HAUSER, 2000, p.25).

Mantendo sua forma primária de produção econômica, com maneiras tipicamente rurais de organização social, a Andaluzia do início do século XX está ainda assim situada na mesma Europa pós-industrial. A existência da atividade artística de Lorca, vinculada a esse lugar, simultaneamente dá testemunho da resistência desse imaginário local e da profundidade de seu alcance no âmbito cultural europeu. A musicalidade e o ritmo dos cantos não deixam dúvida nem quanto à raiz local de Yerma. Esses mesmos e ainda outros elementos anunciam a proximidade do “outro”, fazendo com que essa “ressonância” dilua a fronteira e desconstrua, a seu modo, o discurso da divisão, sugerindo a convivência.

Com Jung (1932) pretendemos que o desenvolvimento do caráter de Yerma foi tratado como “designação [que] age como se fosse uma lei de Deus, da qual não é possível esquivar-se”. Assim considerados os argumentos de Jung, a conduta da personagem Yerma não poderia ser outra, pois atende a imposições, vocações, chamados interiores, como vozes de serpentes, ou outro qualquer impulso “demoníaco”, que a leva a cumprir seu destino. Situação patente desde o início, posto que, ao casar-se, o primeiro pensamento que lhe veio, imediatamente, foi o de ter filhos. Nessa altura, acredita-se pouco importar, tendo em vista as pretensões deste artigo, se Yerma se casou com o homem que queria ou com aquele imposto pelo pai. Este último, justamente, o caso específico e comum à época, tanto de um como de outro lado do mundo.

O percurso de individuação de Yerma exigia o cumprimento da ordem da “voz” que lhe ordenava ser mãe. Essa trajetória é decisiva na constituição de caráter na peça. No caso de Yerma a “fonte do mal”, se está fora dela, ou seja, se está na infecundidade de seu marido, Juan, não está completamente imposto de fora, mas no desenvolvimento de seu caráter, como nos informa o próprio Lorca. Há outros protagonistas na peça, mas são quase “tipos”. O único caráter em desenvolvimento é o de Yerma. Para Aristóteles, em sua Poética (1450a), “os caracteres são subordinados à ação e são definidos como ‘aquilo que nos faz dizer, das personagens que vemos em ação, que elas têm estas ou aquelas qualidades’. (...). Por extensão, caráter designa essa personagem em sua identidade psicomoral” (PAVIS, 1999).

O “desenho sinuoso” que pode ser visualizado na trajetória de Yerma, revela o que Jung chama de “tendência reguladora ou direcional oculta, gerando um processo lento e imperceptível de crescimento psíquico” (JUNG, 2002). O que insinua esse “desenho” é o que o analista chama de processo de individuação. Para Nise da Silveira,

Todo ser tende a realizar o que existe nele em germe, acrescer, a completar se (...). Mas no homem, embora o desenvolvimento de suas potencialidades seja impulsionado por forças instintivas inconscientes, adquire caráter peculiar: o homem é capaz de tomar consciência desse desenvolvimento e de influenciá-lo. Precisamente no confronto do inconsciente pelo consciente (...) é que os diversos componentes da personalidade amadurecem e unem-se numa síntese. Essa confrontação (às vezes conflito, às vezes colaboração) é o “velho jogo do martelo e da bigorna: entre os dois, o homem, como o ferro, é forjado num todo indestrutível, num indivíduo. Isso, em termos toscos, é o que eu entendo por processo de individuação (SILVEIRA, 1978).

Recusando-se aos apelos de concessões ao modelo masculino de ordenação da cultura local, Yerma insistiu em persistir em uma caminhada inversa àquela que fez Psiquê. Esta se submete aos poderes da Grande-Mãe, conquista o amor e a ascensão. Machado e Galdino (2010), explicitando as “trajetórias inversas, de ascensão e queda, das duas heroínas”, defendem que Yerma, ao contrário, submete seus desejos corporais e psíquicos de mulher e obstina-se com a “necessidade” de ser mãe. Além disso, buscando cegamente explicações para o fato de ainda não sê-lo, sucumbe, com o assassinato, ainda que obliquamente, de seu filho, pois matando Juan, eliminava, por força de sua formação moral, sua única possibilidade de ser mãe.

Não obstante a obra de Garcia Lorca ser revelação de sua consciência e responsabilidade para com os limites da tradição de seu povo, dos limites da construção da personalidade feminina, o seu texto também revela outra dimensão de fronteira, agora, então, de ordem estética. Numa entrevista em julho de 1934, Lorca afirmou, sobre a produção de Yerma:

Ahora voy a terminar Yerma, una segunda tragedia mia. La primera fue Bodas de sangre. Yerma será la tragedia de la mujer estéril. El tema, como usted sabe, és clásico. Pero yo quiero que tenga un desarrollo y una intención nuevos. Una tragedia con cuatro personajes principales y coros, como han de ser las tragedias. Hay que volver a la tragedia. Nos obliga a ello la tradición de nuestro teatro dramático (LORCA, 1991).

O coro está presente no nascimento da tragédia, ou seja, nas suas origens religiosas que Lorca se propõe retomar. De acordo com Pavis (1999), “A tragédia grega teria nascido do coro de dançarinos mascarados e cantores”, passando, em seguida a “forças não individualizadas e frequentemente abstratas que representam interesses morais e políticos superiores”. Em Yerma, a forma mais condensada do coro aparece no canto das lavadeiras. Nenhum nome é mencionado e suas falas são separadas umas das outras por meio de números. De novo o três, pois são seis as lavadeiras, a totalidade reiterada da voz do povo. Aqui, no entanto, as notas são dissonantes, e vão desde a maledicência mais aberta à sensibilidade mais aguda para com o sofrimento de Yerma. Sempre com ritmo e harmonia, marcados pelas batidas dos panos nas pedras molhadas.

Por essas razões estão fadadas à incompletude todas as tentativas de falar da produção de Federico García Lorca sem mostrar a música e a dança, o ritmo, seu andamento poético, sua vertigem da terra natal. O que resumimos na sua felicidade transbordante com a presença dos coros. Uma possibilidade é a percepção do “impulso lírico” (HEGEL, 1832, apud PAVIS, 1999) muito claro no texto, inclusive extrapolando o espaço próprio do coro. Lorca afirma que há necessidade de produzir tragédias, como uma obrigação do artista para com o seu povo. Por outro lado, o artista que busca a tradição da tragédia (“Hay que volver a la tragedia. Nos obliga a ello la tradición de nuestro teatro dramático”), quer propor “que tenga un desarrollo y una intención nuevos”.

Vale pensar sobre esse novo desenvolvimento e essa nova intenção, de que nos fala Lorca. Na tragédia clássica, cuja teorização tem como ponto de partida quase sempre Aristóteles, o destino do herói está traçado independentemente de sua conduta em cena. Isso faz com que a personagem trágica, qualquer que seja a sua conduta, encontre o seu destino, determinado pelos deuses ou pela ancestralidade. Daí a origem religiosa da tragédia, no mythos aristotélico. Em Yerma, os coros não impõem preceitos morais ou políticos “superiores”, pelo contrário, sugerem possibilidades de atuação, embora reflitam o imaginário do povo do lugar. Essas sugestões dos coros, concentradas no canto das lavadeiras, mas espalhadas pelo lirismo acentuado e pelo texto todo, farão parte do universo das escolhas possíveis que definirão a trajetória de Yerma. De qualquer forma, do conjunto das falas dos coros é possível identificar vetores. 

A tragédia moderna traz o trágico como algo intrínseco ao caráter do herói, à sua conduta, ou, dizendo de outra forma, apresenta o destino como resultado do desenvolvimento de seu caráter, de sua conduta. Na modernidade, distintamente, conforme Hauser (2000), a tragédia não é dada, é “descoberta” pelo herói. Em Yerma o que se tem é um caráter em desenvolvimento. Um caráter que se desenvolve artisticamente em espaço de fronteira, ou seja, que coloca em discussão os conceitos modernos e clássicos para a tragédia como gênero. Além disso, no caso de Yerma, há a proposta polêmica da realização de tragédias em tempos modernos, o que coloca o texto, inclusive sob esse aspecto, numa situação de fronteira estética. Fronteira esta que envolveria a discussão não só das relações entre o trágico e o lírico, mas também entre modernidade e tradição.

Finalmente, embora a crítica do imaginário possa estar visível em vários momentos deste artigo, gostaríamos de sugerir as possibilidades de recepção de Yerma, como atualização/tradução de alguns mitos do mundo antigo. Parece-nos mais facilmente destacáveis: Úranos e Géia – “Vieja: Para tener um hijo há sido necesario que se junte el cielo com la tierra”, Perséfone – Yerma: Las mujeres dentro de sus casas. Cuando sus casas no son tumbas”e Eros e Psiquê – Yerma: Ojará fuera yo una mujer; Juan: Lo que pasa es que no eres una mujer verdadera”.

Conclusão

Esperamos que as noções de fronteiras com as quais elaboramos este texto tenham possibilitado a visualização da peça como marca profunda do artista e que sinalizem para o mito dominante na Andalucía, em Yerma e para o mito pessoal de Garcia Lorca.  Em Yerma, obra em que se vê o sangue dos personagens, os únicos mascarados são reminiscências da tragédia clássica. Todo o mais é poesia que se faz gente do povo colocada em cena na tensão do tempo presente. Vale lembrar que o texto foi concebido num tempo que não corresponde àqueles dos três grandes momentos da tragédia: o período clássico grego, a Inglaterra do século XVI e a França do século XVII. Esse fato nos lançaria a uma nova fronteira, agora temporal, que estaria sendo criada por Lorca.

A síntese que se buscou com este estudo é a do homem em situação de fronteira, ou seja, um tradutor que, ao mesmo tempo, promove a atualização da pesquisa estética e do imaginário do seu tempo, do seu lugar, do seu povo. Tal síntese seria capaz de recuperar e valorizar as tradições, que são coletivas, mas que também faz do artista um ser que se coloca em discussão, apontando caminhos novos de interpretação dessa tradição, apresentando formas novas. Se o artista trabalhou em situação de fronteira, todas elas foram reformuladas, o que queríamos que significasse uma atualização/tradução do imaginário material universal em contexto andaluz.



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