sábado, 12 de julho de 2014

rapsody in blue

Cuidado para não sentir como se fosse apenas tristeza,
Porque não é.
Não é, não.
Não!
Não canto, querida; não, não sou músico.
Sei, no entanto, que hoje cantaria para o céu azulzinho.
É simples: a vida não vem em ondas, mas em músicas.
Harmonias, arpejos, ritmos, melodias, alturas...
Um grito esganiçado e pronto: eis a mensagem. Poeira.
Ouço o som doce e triste do pássaro, querida.
Amor: só sei deixar crescer as asas para que o ser amado voe;
Cultivar raízes para que tenha motivos para ficar;
Oferecer gestos, sons, olhares e cuidados...
Para que exista vontade de voltar.
Amores são do vento, dos sons que o vento traz e leva.
Somos todos uma coisa só: sons de mil notas e tons.
Cuidado para não ouvir como se fosse apenas tristeza,
Porque não é.
Não é, não.
Não!
Meu canto blue é da alma que não é minha.
Meu canto blue é reflexo de folhas de árvores se roçando.
Meu canto blue é o de chifres de bois se batendo.
Meu canto blue é o da água murmurando...
Da pedra rolando,
Da pétala caindo,
Da folha seca alçando voo...
Não quero nada para mim, pois nem sei prender nada.
Digo melhor, acho: quero apenas ser e ouvir,
Quero ser eu, que não sei o que é.
Cuidado para não ler como se fosse apenas tristeza,
Porque não é.
Não é, não.
Não!

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Texto: Gilson.

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terça-feira, 17 de junho de 2014

Fabulosa Minas



Eis a espada, eis a ponte, eis a montanha
sobre a qual se recorta a igreja branca.

Eis o cavalo pela verde encosta.
Eis a soleira, o pátio, e a mesma porta.

E a direção do olhar. E o espaço antigo
para a forma do gesto e do vestido.

E o lugar da esperança. E a fonte. E a sombra.
E a voz que já não fala, e se prolonga.

E eis a névoa que chega, envolve as ruas,
move a ilusão de tempos e figuras.

̶   A névoa que se adensa e vai formando
nublados reinos de saudade e pranto.

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Imagem: Ouro Preto by Morio
Texto: Cecília Meireles no Romanceiro da inconfidência

segunda-feira, 2 de junho de 2014

homem no espelho



Olhei a palma da minha mão e foi lá que – na falta de palavra melhor – vi: a total e imensa escuridão da terra onde nasci. Eu estava no café, como de costume naquele horário. Uma das mãos segurava o jornal; os olhos, segundos antes olhavam fixamente pela vidraça, cuja transparência a chuva havia diminuído.

O homem de bigodes – o homem de bigodes e de chapéu panamá marrom – desce, olhos fixos no chão, e lentamente, a rua estreita. São seis horas e uns tantos minutos da tarde e a chuva fina criava uma superfície brilhante sob as últimas luzes do dia. O homem parecia caminhar sobre um piso envidraçado. Espelho. Na mão esquerda a bengala; a direita, escondida no bolso do paletó preto.

O homem atravessou a rua para a calçada do lado do café onde eu estava e o vi entrar na locadora de filmes. Minha mão; um passado obscuro; jornal; a vidraça... E já o homem saía da loja, levando três ou quatro filmes: não se podia ver com nitidez, pois a noite vinha se adiantando. O homem fez o seu caminho de volta: talvez jamais saberei se levava os filmes para alguém, se ele mesmo a eles assistiria sozinho, se o faria com sua companheira, se teria alguém a esperar por ele em casa. Se voltava para casa ou se se dirige a algum hotel próximo... Talvez.

Instantes depois, eu mesmo saía da locadora, levando para casa, para ver pela primeira vez, filmes a que já eu havia assistido.

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Imagem: Fotografia de German Lorca
Texto: Gilson.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Palavras ao vento



O som do mar fez do meu ouvido um caracol; 0 meu amor se foi embora dizendo me amar; a janela do meu escritório me deixa ver o sol; subo só e eu quero com o mar sonhar, calado: na caverna alta rabiscar seu nome em muitas línguas. Deixar lá as muitas vozes de mim, que só você poderia ter escutado.


Não vivo a volúpia demoníaca do amanhã, essa vontade inconfessada de não querer existir. Hoje foi amanhã ontem. Acredito no instante: naquele instante exato em que me disse do meu medo de ser feliz. Deixa, deixa-me dizer: essas palavras transbordam, me sobram, já nem são minhas (escapam, fogem de mim). Essas filhas do vento, um dia em mim insufladas...

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Imagem: Google images
Texto: Gilson.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Porosidade



Somos seres porosos.
Há poros menores; há poros maiores.
Há os poros mínimos e os enormes...
Mas a vida passa por nós é por esses vazios.

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Imagem: Google images
Texto: Gilson.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Amanhecer é uma lição do universo


Comendo fumaça na corda bamba
[sem sombrinha e sem circo].
Da senzala não passo com meu samba:
Sinhá foge a denunciar ao Senhor.
[de noite, ela mesma se senta na varanda a ouvir].
Pimenta para cheirar e as estrelas [no céu a subir]...
Para deitar na grama e contar.

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Título: verso da canção de Renato Teixeira
Imagem: Red Rose, Graham Fagen
Texto: Gilson.

domingo, 18 de maio de 2014

Três Pedros



― A notícia que Pedro esperava com ansiedade tamanha, em sua vida livre na grande fazenda do pai, chegou ao amanhecer: “Olhinhos pariu esta noite, são sete gatinhos, precisa ver o tanto que são pequeninos. Venha”. Era a voz de Dontinha, que, a esta altura sacudia Pedro na cama.
Talvez temendo algum acontecimento ruim, Dontinha esperou que o pai de Pedro saísse para a lida diária, para só depois chamar o menino. Pedro nunca teve preguiça de sair da cama, mas naquele dia, ainda escurozinho, num salto o menino já estava no canto da cozinha. Perto do grande fogão a lenha, junto dos panos que Dontinha havia arrumado para Olhinhos ter seus filhotes, deslumbrou-se com o tamanhozinho dos bichinhos, ainda de olhos fechados, sujeitos à lambeção da mãe. Nos seus quase oito anos já havia visto a cria de todo tipo de animal vivente na fazenda, mas era a primeira vez que via os de uma gata. Olhinhos era de Dontinha, que ajudava a mãe de Pedro na arrumação da enorme casa e era mulher de um meeiro de seu pai.
Passou toda a manhã observando os movimentos naquele espaço da casa. Os filhotes começaram logo cedo a emitir seus sons miados e eram muitos.
O sol estava a pino quando o pai chegou. Tinha na cara um ar de assombro e, nas mãos um saco de linhagem, desses de 60 quilos com que se carregam arroz e feijão para a cooperativa. Num gesto brusco, recolheu panos e filhotes e jogou tudo no saco, estendendo-o para o menino assustado.
― Pedro, pegue, arrume um cavalo, vá até o rio e jogue isso lá. Jogue com força, o mais longe que puder, dentro do rio.
Pedro fez o que o pai mandou ― não ousava questioná-lo ― e rumou em direção do rio. Não podia, porém, cumprir aquela ordem de jogar os animaizinhos na água. Não podia. Iria mentir, fingir que jogasse, fazia de conta e pronto. Tinha só que arrumar lugar para eles, e comida. A criação veio rapidamente: a Olhinhos tinha a comida deles e deveria desaparecer também. Contou para o pai, à noite, que havia jogado a gata e seus filhotes no rio, assim ficavam livres do problema para sempre. Nunca se saberá o que o pai pensou daquilo.
Pedro, enquanto esteve na fazenda, até o fim daquele ano, ia, todos os dias, furtivamente, visitar Dontinha, que cuidava, cúmplice, de Olhinhos e de seus filhotes. Ele pediu para dar nome a um deles e Dontinha gostou da ideia, apesar de informar que já vinha chamando cada um por um nome.
― Não tem problema. Essa aqui será a Sete Vidas Minhas.
Dontinha soltou uma gargalhada linda:
― Moleque...
A memória da gente é porque não ajuda mais. As ideias vão se remexendo dentro, umas se adiantando, outras se atrasando: tudo mudando de lugar. O que me honra é esse seu querer me ouvir. Por isso vou tentando contar. Naquele tempo ainda existia aqui na banda de baixo dessa mata, umas quinze léguas, deve ser... Então, existia ainda a Fazenda do Seu João Juvêncio. Fazendão de homem de riquezas, muito boi, muito pasto e muita roça ainda tinha. O senhor vai lá hoje e não vê mais nada, coisa triste. Acabou.
Então. naquele tempo, que eu falava, nasceu ali uma criança. Um menino. Conto mal: claro que nasceram lá muitas crianças. O que eu quero dizer é que nasceu o menino que é o da estória que eu conto, e que você espera que eu conte. Você sabe: nasciam ali eram apenas os filhos dos meeiros, empregados e capangas do Seu João Juvêncio, porque os filhos dos homens ricos nascem é em hospital de cidade. Sempre foi assim. Quando morrem, estes, também é lá, nos hospitais das cidades. Pobres, não: os filhos desses nasciam onde estavam; e morrem quando e onde Deus quisesse. Tudo isso estou dizendo para nada, pois, se é, já é coisa que você, tão instruído, deve saber e muito mais do que eu mesmo. Bobeio.

Esse menino que nasceu na Fazenda que existiu ali era filho do Nêgo e da Dontinha. Nêgo era meeiro do Seu João Juvêncio, e também existiu sempre na Fazenda. Ele e Dontinha, sua mulher, eram do tempo de Vô Tonico, pois era desse que João Juvêncio tinha herdado as terras da Fazenda. Vô Tonico era o pai da Sinhá Lina e sogro, então, na época, de João Juvêncio. Nascido o menino, ele cresceu solto por esses campos todos. Você verá: esses espaços não têm tamanho, mundo sem beirada a nenhuma. A gente procura e é só o que existe. Os capões de mato, o capoeirão, o cerradinho, os campos limpos, as roças e os roçados, os ribeirõezinhos, riachinhos, rios, rios. Cerca você verá, mas naquele tempo também não tinha. Este menino, este que nasceu, que conto a você, era quase igual a esse mato aí. Sempre se alegrava: com a chuva, que lavava sua cara; com o sol, que o fazia ver mais cores em tudo que era coisa que existia. Pedro se chamava. Um outro Pedro, de antes.


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Texto e imagem: Gilson.

sábado, 17 de maio de 2014

Lamento


Acreditas que eu volte?
Não, certo?
Só quem se foi pode voltar?
Como se pode assim sempre ficar?
Deixar-me é impossível?
Deixar-te me será assim sempre impossível?
Então, volto para o mesmo lugar de onde parti,
[como se o conhecesse pela primeira vez,
[assim como nos ensinou o velho Eliot?

Ele nos ensinou isso?

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Texto e imagem: Gilson.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Tu te lembras?



Tu te lembras daquele abraço,
de reencontro e notícia de Zeus no ouvido?

Tu te lembras daquela estrada,
em que o mar, água tanta, passava por baixo?

Tu te lembras daquela Salvador,
em que chorei, sob chuva, cheio de certezas?

Então!

O reencontro [antes tão certo]...
hoje se confunde, evanescente:

névoas, nuvens, dores e fumaça de cigarros!


].Texto e imagem: Gilson.[

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Seguir vivendo...





Queria ser bem velho para poder ter visto se encontrarem e chegarem juntos a Belém os três reis do Oriente. Queria ter sabido como se encontraram. Contento-me em me deixar guiar pela poesia de Sophia.


Queria ser velho, mas muito velho mesmo. Ter todas as idades para poder ter visto, em campo, jogarem Pelé e Eusébio.





Quero ser mais que velho gagá, ãhã! Quero ficar um velho gagá, caquético e repetitivo, capaz de contar a mesma estória, para a mesma pessoa, dezenas de vezes. Para pessoas diferentes, contar-se-ia às centenas. Ah, ser um ancião. Quero ser translúcido: a luz passaria por mim, sem refletir, indicando que pouco de material restava. A caquexia será de grande ajuda: dois terços do que se produz no mundo, hoje, podem ser classificados como lixo, e eu estaria quase livre de ouvir e ver isso chegar perto dos quatro quintos. Esse ranço, graças a Deus, já é sinal de que estou envelhecendo. Na verdade, sempre senti essa nostalgia do Paraíso, que um dia sei que traduzirei por sonsice de velho. Ou, talvez, poesia. Isto será meu último orgulho. A minha sonsice de velho me elevará a senhor do meu silêncio, essa centelha divina que mora em mim e que, ainda jovem, a palavra trai.

Imagens: Google
Texto: Gilson.