Miguilim
− Por que
você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista?
(...)
− Este nosso
rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim...
E o senhor
tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.
− Olha,
agora!
Miguilim
olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e
diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de
areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão
de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo... O
senhor tinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda apontava, falava,
contava tudo como era, como tinha visto. Mãe esteve assim assustada; mas o
senhor dizia que aquilo era do modo mesmo, só que Miguilim também carecia de
usar óculos, dali por diante. O senhor bebia café com eles. Era o doutor José
Lourenço, do Curvelo. Tudo podia. Coração de Miguilim batia descompasso, ele
careceu de ir lá dentro, contar à Rosa, à Maria Pretinha, à Mãitina. A Chica
veio correndo atrás, mexeu: − “Miguilim, você é piticégo...” E ele repondeu: − “Donazinha”...
Quando
voltou, o doutor José Lourenço já tinha ido embora.
− Você está
triste, Miguilim? Mãe perguntou.
Miguilim não
sabia.
(...)
− Pra onde
ele foi?
− A foi p´ra
a Vereda do Tipã, onde os caçadores estão. Mas amanhã ele volta, de manhã,
antes de ir s´embora para a cidade. Disse que, você querendo, Miguilim, ele
junto te leva... – O doutor era um homem bom, levava o Miguilim, lá ele
comprava uns óculos pequenos, entrava para a escola, depois aprendia ofício. – “Você
mesmo quer ir?”
(...)
− “Miguilim,
você está aprontado? Está animoso?” Miguilim abraçava todos, um por um, dizia
adeus até aos cachorros, ao Papaco-o-Paco, ao gato Sossõe que lambia as
mãozinhas se asseando. Beijou a mão da mãe do Grivo: − “Dá lembrança ao seo
Aristeu... Dá lembrança a seo Deográcias...” Estava abraçado com Mãe. Podiam
sair. Mas, então, de repente, Miguilim parou em frente ao doutor. Todo tremia,
quase sem coragem de dizer o que tinha vontade. Por fim, disse. Pediu. O doutor
entendeu e achou graça. Tirou os óculos, pôs na cara de Miguilim. E Miguilim
olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima
do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral,
o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou, mais longe, o
gado pastando, perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde
dos buritis, na primeira vereda. O Mutúm era bonito! Agora ele sabia. Olhou Mãitina,
que gostava de o ver de óculos, batia palmas-de-mão e gritava: − “Cena,
Corinto!... Olhou o redondo de pedrinhas, debaixo do jenipapeiro.
Olhava mais
era para Mãe. Drelina era bonita, a Chica, o Tomezinho. Sorriu para Tio Terêz: −
“Tio Terêz, o senhor parece com Pai”... Todos choravam. O doutor limpou a
goela, disse: − “Não sei, quando eu tiro esses óculos, tão fortes, até meus
olhos se enchem d`água...” Miguilim entregou a ele os óculos outra vez. Um
soluçozinho veio.
(...).
Trechos de “Campo geral”,
novela/poema/romance de Corpo de Baile,
depois, separada, transformada em Manuelzão
e Miguilim. João Guimarães Rosa.
___
Nunca vou me esquecer do dia nem da hora quando alguém me
disse, eu com o livro na mão, primeira vez: − “Preste atenção no olhar de Miguilim...” Hoje eu sei que este é o
olhar de Joãozito. E nele estão a proximidade e a distância, os fragmentos, a
tontura e a neblina, o céu, o curral, o quintal, os gados pastando nos brejos
froridos, o verde dos buritis (e dos olhos de Diadorim).
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