domingo, 6 de maio de 2012

Os verdes



Miguilim

− Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista?
(...)
− Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim...
E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.
− Olha, agora!
Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo... O senhor tinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha visto. Mãe esteve assim assustada; mas o senhor dizia que aquilo era do modo mesmo, só que Miguilim também carecia de usar óculos, dali por diante. O senhor bebia café com eles. Era o doutor José Lourenço, do Curvelo. Tudo podia. Coração de Miguilim batia descompasso, ele careceu de ir lá dentro, contar à Rosa, à Maria Pretinha, à Mãitina. A Chica veio correndo atrás, mexeu: − “Miguilim, você é piticégo...” E ele repondeu: − “Donazinha”...
Quando voltou, o doutor José Lourenço já tinha ido embora.
− Você está triste, Miguilim? Mãe perguntou.
Miguilim não sabia.
(...)
− Pra onde ele foi?
− A foi p´ra a Vereda do Tipã, onde os caçadores estão. Mas amanhã ele volta, de manhã, antes de ir s´embora para a cidade. Disse que, você querendo, Miguilim, ele junto te leva... – O doutor era um homem bom, levava o Miguilim, lá ele comprava uns óculos pequenos, entrava para a escola, depois aprendia ofício. – “Você mesmo quer ir?”
(...)
− “Miguilim, você está aprontado? Está animoso?” Miguilim abraçava todos, um por um, dizia adeus até aos cachorros, ao Papaco-o-Paco, ao gato Sossõe que lambia as mãozinhas se asseando. Beijou a mão da mãe do Grivo: − “Dá lembrança ao seo Aristeu... Dá lembrança a seo Deográcias...” Estava abraçado com Mãe. Podiam sair. Mas, então, de repente, Miguilim parou em frente ao doutor. Todo tremia, quase sem coragem de dizer o que tinha vontade. Por fim, disse. Pediu. O doutor entendeu e achou graça. Tirou os óculos, pôs na cara de Miguilim. E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou, mais longe, o gado pastando, perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis, na primeira vereda. O Mutúm era bonito! Agora ele sabia. Olhou Mãitina, que gostava de o ver de óculos, batia palmas-de-mão e gritava: − “Cena, Corinto!... Olhou o redondo de pedrinhas, debaixo do jenipapeiro.
Olhava mais era para Mãe. Drelina era bonita, a Chica, o Tomezinho. Sorriu para Tio Terêz: − “Tio Terêz, o senhor parece com Pai”... Todos choravam. O doutor limpou a goela, disse: − “Não sei, quando eu tiro esses óculos, tão fortes, até meus olhos se enchem d`água...” Miguilim entregou a ele os óculos outra vez. Um soluçozinho veio.
(...).

Trechos de “Campo geral”, novela/poema/romance de Corpo de Baile, depois, separada, transformada em Manuelzão e Miguilim. João Guimarães Rosa.

___

Nunca vou me esquecer do dia nem da hora quando alguém me disse, eu com o livro na mão, primeira vez: − “Preste atenção no olhar de Miguilim...” Hoje eu sei que este é o olhar de Joãozito. E nele estão a proximidade e a distância, os fragmentos, a tontura e a neblina, o céu, o curral, o quintal, os gados pastando nos brejos froridos, o verde dos buritis (e dos olhos de Diadorim).

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