"(...) Nhorinhá, filha de Ana Duzuza: um dia eu
recebi dela uma carta: carta simples, pedindo notícias e dando lembranças,
escrita, acho que, por outra alheia mão. Essa Nhorinhá tinha lenço curto na
cabeça, feito crista de anu-branco. Escreveu, mandou a carta. Mas a carta gastou
uns oito anos para me chegar; quando eu recebi, eu já estava casado. Carta que
se zanzou, para um lado longe e para o outro, nesses sertões, nesses gerais,
por tantos bons préstimos, em tantas algibeiras e capangas. Ela tinha botado
por fora só: Riobaldo que está com
Medeiro Vaz. E veio trazida por tropeiros e viajores, recruzou tudo. Quase
não podia mais se ler, de tão suja dobrada, se rasgando. Mesmo tinham enrolado
noutro papel, em canudo, com linha preta de carretel. Uns não sabiam mais de
quem tinham recebido aquilo. Ultimo, que me veio com ela, quase por engano de acaso,
era um homem que, por medo da doença do toque, ia levando seu gado de volta dos
gerais para a caatinga, logo que chuva chovida. Eu já estava casado. Gosto de
minha mulher, sempre gostei, e hoje mais. Quando conheci de olhos e mãos essa
Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento. Quando ela escreveu a carta, ela
estava gostando de mim, de certo; e aí já estivesse morando mais longe, magoal,
no São Josezinho da Serra – no indo para o Riacho-dasAlmas e vindo do Morro dos
Ofícios. Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela, de grande amor em
lavaredas; mas gostando de todo tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela
estive, na Aroeirinha, e conheci, concernente amor. Nhorinhá, gosto bom ficado
em meus olhos e minha boca. De lá para lá, os oito anos se baldavam. Nem
estavam. Senhor subentende o que isso é? A verdade que, em minha memória,
mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda. De certo, agora não gostasse mais
de mim, quem sabe até tivesse morrido... Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso,
muito entrançado. Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor
tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é
uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria
entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos
atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas é que
a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não
sabe! Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo,
sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me
ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim
com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande
sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só
essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de
atenção. Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro. Depois o senhor
verá por quê, me devolvendo minha razão."
RIOBALDO, em Grande
sertão: veredas, pouco antes de começar a mostrar sua estória, depois de
100 páginas contando-a. O “fato” a que se refere, o “O primeiro”, é a travessia
do Rio São Francisco com Diadorim. Será o começo mesmo, pois todo o resto são dobras, redobras e desdobramentos e novas dobras.
Não conheço o escritor mas gostei do texto e da fotografia.
ResponderExcluirGilson, obrigada pelas suas palavras na minha janela. São sempre de uma sensibilidade que me toca.
Abraço!:)
Ana, já disse: vá à loja, compre o livro e o leia. Aí está: um Brasil que eu queria que as pessoas conhecessem. A fotografia é minha, às margens do Rio São Francisco, um pouco abaixo de São Romão. Minha arte e meu equipamento não ajudam, mas o lugar é muito bonito.
ExcluirAbraço.
Gilson.