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Buritis, em vereda próxima do Rio Carinhanha |
Para o caso de “Cara-de-Bronze”,
inicialmente transcrevo um resumo do texto apresentado pelo autor, João
Guimarães Rosa, ao seu tradutor para o italiano, o Professor Edoardo Bizzarri,
por ocasião da tradução de Corpo de Baile:
“RESUMO: O ‘Cara-de-Bronze’ era do Maranhão (os
campos-gerais, paisagens e formação geográfica típica, vão de Minas Gerais até
lá, ininterruptamente). Mocinho, fugira de lá, pensando que tivesse matado o
pai (pág. 619 [172], etc. Veio, fixou, concentrou-se na ambição e no trabalho,
ficou fazendeiro, poderoso e rico. Triste, fechado, exilado, imobilizado pela
paralisia (que é a exteriorização de uma que como ‘paralisia da alma’), parece
misterioso, e é; porém, seu coração, na última velhice, estalava. Então, sem se
explicar, examinou seus vaqueiros – para ver qual teria mais viva e
‘apreensora’ sensibilidade para captar a poesia das paisagens e lugares. E
mandou-o à sua terra, para, depois, poder ouvir dele, trazidas por ele, por
esse especialíssimo intermediário, todas as belezas e poesias de lá. O
Cara-de-Bronze, pois, mandou o Grivo... buscar Poesia.” (ROSA, 2003).
Queremos entender esse
retorno (ainda que intermediado) ao espaço de origem, como forma de buscar
elementos para combater a “paralisia” da alma, e, ainda, que esses elementos
estavam naquilo que o Grivo pudesse apreender da experiência da paisagem física
que teimava em existir na memória ou no imaginário do Velho. As memórias do
Cara-de-Bronze, porém, já não bastam, ele precisa de relatos, de narrativas, de
uma alguma espécie de confirmação. Pensando no processo criativo de Guimarães
Rosa também como essa busca pela palavra poética, vale recuperar suas próprias considerações
acerca do seu trabalho:
Eu,
quando escrevo um livro, vou fazendo como se o estivesse “traduzindo”, de algum
alto original, existente alhures, no mundo astral ou no “plano das ideias”, dos
arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando, nessa
“tradução”. Assim, quando me “re”-traduzem para outro idioma, nunca sei,
também, em casos de divergência, se não foi o Tradutor quem, de fato, acertou,
restabelecendo a verdade do “original ideal”, que eu desvirtuara...
Ainda que escolhesse entre
os vaqueiros aquele mais habilidoso e sensível e talvez, pour cause, quanto mais este “mentisse” ao voltar, ou se
desvirtuasse do “original” ou quanto mais inventasse, tanto melhor. O velho
Cara-de-Bronze não queria História, precisava de invenção, de poesia. Numa nota
de rodapé, uma fala de vaqueiro: “– Ri sem fechar os olhos, Zazo! A gente aqui
olha, e outro é que vê...”. Outra fala de vaqueiro ainda testemunha: “Ele [O
Velho] acredita em mentiras, mesmo sabendo que mentira é”. A mesma consciência
aparecerá na fala de Riobaldo, ao mencionar que, ao final de sua narrativa,
quem saberá mais dele é o seu visitante/ouvinte. Pensamos à também é o leitor,
que vai à biblioteca ler, ou à livraria comprar um livro. Estaríamos todos
interessados nas profundezas e sutilezas das coisas, no estranhamento do mundo
que a música e a poesia oferecem de humanidade ao inumano combate.
Dos primeiros críticos a se
dedicarem ao conto “Cara-de-Bronze”, Benedito Nunes, que também conta entre os
pioneiros que analisaram o Grande sertão:
veredas, lembra, em seu texto “A viagem do Grivo”, a abertura do espaço que
via no conto.
Mas o único bem, finalmente alcançado em “Cara-de-Bronze”
que o Grivo entrega, na volta, ao mandante do feito, é o relato das coisas
vistas e imaginadas durante o percurso: a Viagem transformada em palavras,
súmula da atividade poética, que abriu os espaços do sertão e os converteu na profusão do mundo natural e humano (NUNES,
2010).
O Cara-de-Bronze, que tudo
comandava, praticamente não era visto. Interiorizava-se. Por oposição a essa
espécie de congelamento no interior, a atividade externa, pertencente ao
universo mais diretamente ligado aos vaqueiros, ainda que partisse das ordens
“riscadas” pelo patrão, colocava tudo em movimento frenético da lida diária da
vida na grande fazenda de gado. Esse complexo espacial é refletido na estrutura
do texto: inúmeras notas de pé de página, citações, indicações cênicas e forma
dramática, cantigas, andamento às vezes utilizando-se de recursos
cinematográficos, distribuição de trechos de maneira não usual pela página,
entre outros elementos. Da mente quieta e misteriosa do Velho à movimentação
externa algo ficava sempre por dizer: se a memória congelava a alma, o empírico
modo de vida não impedia que as sombras ativassem os sons e as imagens da terra
de origem e constituinte do personagem recolhido. O espaço vivido por ele, em
outro lugar, insistia em reter o tempo suspenso no espaço/tempo mítico, e o
configura em duas faces: uma, interior, “paralisada” pela suspensão mítica;
outra, externa, a da movimentação dos vaqueiros. Os ambientes se alimentam um
do outro: o trabalho da lida é resultado das ordens que partem de dentro (da
casa, que já é desdobramento e figuração da cabeça do Velho); o silêncio de Cara-de-Bronze
recebe alento das cantigas dos cantadores. Há sempre deles por perto, o Velho
os paga para estarem sempre produzindo sons com suas violas. Tecendo fios
imaginários nascidos da vibração das cordas. Pela voz do cantador Quantidades,
o velho tinha acesso ao canto e a “palavra-canto abole as demarcações
temporais, celebrando a saída de um tempo profano e o ingresso numa
temporalidade cíclica” (REINALDO, 2005).
Assim, o Cara-de-Bronze,
confrontado com sua velhice, na proteção do interior de sua casa física às
margens do Rio Urucuia, têm âncoras no Maranhão, no “país da Infância Imóvel,
imóvel como Imemorial (...) vivendo fixações de felicidade (...) ao reviver
lembranças de proteção” (BACHELARD, 2003). Seu plano é materializar tais
lembranças na poesia que o Grivo pudesse trazer das imagens atualizadas de seu
passado remoto e ao mesmo tempo tão paradoxalmente perto. Não se trata de
apenas memória, mas de recuperar “primitividades imaginárias mesmo a respeito
desse ser sólido na memória que é a casa natal”, imagens centralizadoras e
ordenadoras do funcionamento da psique.