sexta-feira, 13 de julho de 2012

De medos e esperanças

Palavras e outros sons já muito ouvidos e bastante conhecidos, mas que não me cansam. Para quem estuda o espaço na literatura é preciosa a ideia de delimitar os lugares de sentimentos como o medo e a esperança.


MURAR O MEDO, por Mia Couto, na Conferência de Estoril 2011.

"O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.

O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção [narrativa] de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A Guerra-Fria esfriou mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. E porque se trata de novas entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação… Precisamos de intervenção com legitimidade divina… O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.

Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.

Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas [incómodas] como, por exemplo, estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Porque motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilião e meio de dólares com armamento militar? Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Porque motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que sejam precisos pretextos de guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fracção muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida… A verdade é que… pesa uma condenação antecipada pelo simples facto de serem mulheres.

A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões do Norte. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente… Citarei Eduardo Galeano acerca disso que é o medo global:

“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.”

E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe."



Stand By Me | Playing For Change | Song Around The World from Concord Music Group on Vimeo.



12 comentários:

  1. Bonjour!
    Have you a translator on your blog?
    Great Vidéo.
    Have a nice day :D

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    1. Bonjour, Muriel!
      Yl y a beaucoup de temps que je pense: "comme faire pour metter un traducteur automatique ici"? Vous m`ai demandé et, voilá, j`ai reussi et il est là, le traducteur. Je suis contente, parce que cela est une vrai supératión de mon ignorance avec les choses des ordinateurs.
      Merci pour ça, pour ta visitation et commentaire.
      Gilson.

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  2. Gracias por su visita. El miedo es inherente en el ser humano, más hay que saberlo combatir,no hay que tener miedo de lo que no no es realidad.
    Cuando suceda esa realidad, también hay que saberla afrontar con madurez.
    Sólo la muerte, nos puede detener.
    Con ternura le dejo un beso
    Sor.Cecilia

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    1. Sor.Cecilia,
      muchas gracias por se deterner a leer y dejar sus ricas palabras en este espacio. Hay si, el miedo inherente, pero pienso en el miedo que nos son impuestos de fuera, todo muy calculado. También no creo haber motivos para temer la muerte cuando la veemos solamente como transformacción. Gracias.
      Con ternura, un beso.
      Gilson.

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  3. Miedos y esperanzas siempre conviven muy de la mano, cuál de las dos ha de ser la que lleve las riendas de la historia dependerá de cuál alimentemos o estimulemos más.

    ABRAZOS, AMIGO!
    Que tengas un lindo fin de semana.

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    1. Olá, Maritza,
      obrigado pela tão honrosa visita e por se deter para comentar. Estou de acordo, mas somente quando os medos não nos são impostos por um determinado modelo de sociedade e que algumas pessoas tirem proveito dos medos que nos impõem.
      Desejo um ótimo final de semana a todos aí, também.
      Abrazos, amiga.
      Gilson.

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  4. Olá!Bom dia! Tudo bem?
    Mia Couto? Se não me engano, ele escreveu um livro de poesias, Raiz de Orvalho (( pode deixar que eu consulto depois)...interessante este texto!Bem profundo e reflexivo!Abordou tudo! Então só vou dar meus "pitacos" sobre o que eu penso : "o problema não é o medo, o problema é não saber administrar o medo.Trata-se, aliás, de um sentimento fundamental na vida do ser humano.Previne dos perigos. Ele é o único ser capaz de ter medo do medo. Isso acontece porque o homem consegue “imaginar”. E a imaginação, como dizia Einstein, é mais forte que o conhecimento....
    Obrigado pela visita!
    Bom final de semana!
    Abraços

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    1. Amigo Felisberto Junior, quanta honra.
      Obrigado pela vista e pelo bonito comentário. Apenas gostaria de registrar minha opinião de que a imaginação é também um conhecimento. Ela é irmã da razão e ambas moram na casa do espírito. Na verdade todo o conhecimento é a manifestação típica de um dos aspectos do Imaginário. A minha opinião está em oposição ao regime diurno do imaginário, hegemônico hoje. Mas não foi sempre assim.
      Bom fim de semana.
      Abraços.
      Gilson.

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  5. Começo dizendo que hoje senti medo e, provoquei medo em quem não merecia.
    Quando vi o outro com medo, parei e pensei no que podia fazer para tirar o seu medo e logo entendi que o medo existe, mas há momentos que temos de ser mais fortes do que ele.
    Belo texto, há de ser lido e relido pelas inúmeras interpretações que nos proporciona.
    Bom resto de final de semana!

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    1. Olá, Anabela, que bom vê-la por aqui. Sabe por quê? Eu tenho certeza que Mia Couto, não tivesse nascido em Moçambique, teria nascido em Minas Gerais, perto de Curvelo ou de Lassance. Talvez fosse até parente de João Guimarães Rosa. Parecem-se muito as formas com que elaboram seus textos, voltados para o que está na sombra, no encoberto, no mistério. Por essas coisas da vida, ele é um mineiro que nasceu na África portuguesa.

      Gostei muito que tenha gostado do texto. E também de que seu medo já tenha se ido. E se foi, foi por precisão.

      Bom resto de final de semana para todos aí, também.
      Abraço.
      Gilson.

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  6. Texto muito interessante,profundo que dá margem á muita reflexão.Atualmente acredito vivermos com muitos medos concretos e outros tantos imaginários.Como não ter medo de ser assaltada e morta por indivíduos sem pingos de sentimentos?Isto para mim é um medo concreto,pois todos dias lemos tais notícias em qualquer jornal.Já deixar de sair á noite,viajar,velejar,e outras tantas coisas por medo que alguma coisa possa acontecer,já é um medo imaginário que vem portanto refletir um sentimento não muito bem administrado.Nossa Gilson,conseguistes dar um nó em meu talentoso cérebro musical.Grande abraço querido amigo.

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    1. Suzane, querida amiga,
      obrigado pela sempre honrosa visita. Creio que você tem razão em tudo que diz em seu comentário. Apenas não compreendi a razão do "nó" a que se refere. Apenas relacionei o medo com a esperança, que a música, uma arte nesse caso manipulada com muita tecnologia, transmite a mim: aquele(a) que tem alguém que o(a) espera não precisa temer.
      Abraços, com desejos de excelente domingo a todos aí.
      Gilson.

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