segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Um ano sem Zeus, nosso único cão

Anoto novamente aqui, porque o tempo não passou, pedaços de texto que escrevi quando Zeus, nosso cachorro, ficou encantado, há um ano, exatamente. Deixo as mesmas palavras, um ano depois, porque não consigo escrever outras, porque o tempo não passou. Parece que também ele, o tempo, está encantado. Virou estrela ou retornou ao mito, origem do seu nome e do de Zeus. Nome sem tamanho, do tamanho de Zeus. Dizem que ano se passou depois do adeus que não pude dar a Zeus (além do simbólico "aZeus" que escrevi em 17 de janeiro de 2011). Talvez interessasse a algumas pessoas saber da riqueza das grandes perdas e dos preciosos encontros/reencontros, tudo no mesmo tempo (ou no mesmo espaço vivido com intensidade, por fim, indizível), mas recolho todos os retalhos e sigo com eles. Memória, história, esquecimento. A história de Zeus, cachorro criado por minha amada e por mim, significa ainda a possibilidade da doçura nesta vida. Todos os dias, a qualquer hora do dia (ou da noite) Zeus estava pronto e nos convidava a brincar. Acho que pelo simples prazer que ele tinha em nos ver felizes. Sigo, entre outros poucos motivos, porque ainda consigo engolir seco.

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"Hora da palavra, hora de não dizer nada" JGR e Milton Nascimento.
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"Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.
"Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinha Vitória guardava o cachimbo.
"Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.
"Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.
"Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinha Vitória retirava os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
"A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.
"Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinha Vitória tinha deixado o fogo  apagar-se muito cedo.
"Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia a mão de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes" Graciliano Ramos, Vidas Secas (p.89-91).

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'Mas estes versos não cantei pra ninguém ouvir, não valesse a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso - o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito - por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia" J.G.Rosa, Grande sertão: veredas, p.333-334.
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A Zeus.
Adeus.
16 de janeiro de 2011.

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