domingo, 8 de abril de 2012

Solve e coagula


Toda a fabulação de Riobaldo está coagulada nos versos da Canção de Siruiz, ouvida, ele ainda moleque, no primeiro encontro com um bando de jagunços na Fazenda São Gregório.

A Canção de Siruiz

“Urubu é vila alta,
mais idosa do sertão:
padroeira, minha vida –
vim de lá, volto mais não...
Vim de lá, volto mais não?...

Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:
buriti – água azulada,
carnaúba – sal do chão...
        
Remanso de rio largo,
viola da solidão:
quando vou p’ra dar batalha,
convido meu coração..."

Antes a poesia, que, 200 páginas depois, a prosa dissolve...

           “Urubu? Um lugar, um baiano lugar, com as ruas e as igrejas, antiquíssimo – para morarem famílias de gente. Serve meus pensamentos. Serve, para o que digo: eu queria ter remorso; por isso, não tenho. Mas o demônio não existe real. Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, até que chegue a hora de se dançar. Travessia, Deus no meio. Quando foi que eu tive minha culpa? Aqui é Minas; lá já é a Bahia? Estive nessas vilas, velhas, altas cidades... Sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito do sertão? Sertão: é dentro da gente. O senhor me acusa? Defini o alvará do Hermógenes, referi minha má cedência. Mas minha padroeira é a Virgem, por orvalho. Minha vida teve meio-do-caminho? Os morcegos não escolheram de ser tão feios tão frios – bastou só que tivessem escolhido de esvoaçar na sombra da noite e chupar sangue. Deus nunca desmente. O diabo é sem parar. Saí, vim, destes meus Gerais; voltei com Diadorim. Não voltei? Travessias... Diadorim, os rios verdes. A lua, o luar: vejo esses vaqueiros que viajam a boiada, mediante o madrugar, com lua no céu, dia depois de dia. Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo azul, e não se aparta de sua água – carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez? Eu queria formar uma cidade da religião. Lá, nos confins do Chapadão, nas pontas do Urucuia. O meu Urucuia vem, claro, entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital. O São Francisco partiu minha vida em duas partes. A Bigri, minha mãe, fez uma promessa; meu padrinho Selorico Mendes tivesse de ir comprar arroz, nalgum lugar, por morte de minha mãe? Medeiro Vaz reinou, depois de queimar sua casa-de-fazenda. Medeiro Vaz morreu em pedra, como o touro sozinho berra feio; conforme jácomparei, uma vez: touro preto todo urrando no meio da tempestade. Zé Bebelo me alumiou. Zé Bebelo ia e voltava, como um vivo demais de fogo e vento, zás de raio veloz como o pensamento da ideia – mas a água e o chão não queriam saber dele. Compadre meu Quelemém outrotanto é homem sem parentes, provindo de distante terra – da Serra do Urubu do Indaiá. Assim era Joca Ramiro, tão diverso e reinante, que, mesmo em quando ainda parava vivo, era como se já estivesse constando de falecido. Só Candelário? Só Candelário se desesperou por forma. Meu coração é que entende, ajuda minha ideia a requerer e traçar. Ao que Joca Ramiro pousou que se desfez, enterrado lá no meio dos carnaubais, em chão arenoso salgado. Só Candelário não era, de certo modo, parente do compadre meu Quelemém, o senhor sabe? Diadorim me veio, de meu não-saber e querer. Diadorim – eu adivinhava. Sonhei mal? E em Otacília eu sempre muito pensei; tanto que eu via as baronesas amarasmeando no rio em vidro – jericó, e os lírios todos, os lírios-do-brejo, copos-de-leite, lágrimas-de-moça, são-josés. Mas, Otacília, era como se para mim ela estivesse no camarim do Santíssimo. A Nhorinhá – nas Aroeirinhas – filha de Ana Duzuza. Ah, não era rejeitã... Ela quis me salvar? De dentro das águas mais clareadas, aí tem um sapo roncador. Nonada! A mais, com aquela grandeza, a singeleza: Nhorinhá puta e bela. E ela rebrilhava, para mim, feito itamotinga. Uns talismãs. A mocinha Miosótis? Não. A Rosa’uarda. Me alembrei dela; todas as minhas lembranças eu queria comigo. Os dias que são passados vão indo em fila para o sertão. Voltam, como os cavalos: os cavaleiros na madrugada – como os cavalos se arraçoam. O senhor se alembra da canção de Siruiz? Ao que aquelas croas de areia e as ilhas do rio, que a gente avista e vai guardando para trás. Diadorim vivia só um sentimento de cada vez. Mistério que a vida me emprestou: tonteei de alturas. Antes, eu percebi a beleza daqueles pássaros, no Rio das Velhas – percebi para sempre. O manuelzinho-da-croa. Tudo isso posso vender? Se vendo minha alma, estou vendendo também os outros. Os cavalos relincham sem causa; os homens sabem alguma coisa da guerra? Jagunço é o sertão. O senhor pergunte: quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo? Mas aquele menino, o Valtei, na hora em que o pai e a mãe judiavam dele por lei, ele pedia socorro aos estranhos. Até o Jazevedão, estivesse ali, vinha com brutalidade de socorro, capaz. Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente – o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Deus é que me sabe. O Reinaldo era Diadorim – mas Diadorim era um sentimento meu. Diadorim e Otacília. Otacília sendo forte como a paz, feito aqueles largos remansos do Urucuia, mas que é rio de braveza. Ele está sempre longe. Sozinho. Ouvindo uma violinha tocar, o senhor se lembra dele. Uma musiquinha até que não podia ser mais dançada – só o debulhadinho de purezas, de virar-virar... Deus está em tudo – conforme a crença? Mas tudo vai vivendo demais, se remexendo. Deus estava mesmo vislumbrante era se tudo esbarrasse, por uma vez. Como é que se pode pensar toda hora nos novíssimos, a gente estando ocupado com estes negócios gerais? Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na paridade. O demônio na rua... Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor. O que eu quero, é na palma da minha mão. Igual aquela pedra que eu trouxe do Jequitinhonha. Ah, pacto não houve. Pacto? Imagine o senhor que eu fosse sacerdote, e um dia tivesse de ouvir os horrores do Hermógenes em confissão. O pacto de um morrer em vez do outro – e o de um viver em vez do outro, então?! Arrenego. E se eu quiser fazer outro pacto, com Deus mesmo – posso? – então não desmancha na rãs tudo o que em antes se passou? Digo ao senhor: remorso? Como no homem que a onça comeu, cuja perna. Que culpa tem a onça, e que culpa tem o homem? Às vezes não aceito nem a explicação do Compadre meu Quelemém; que acho que alguma coisa falta. Mas, medo, tenho; mediano. Medo tenho é porém por todos. É preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma existência. O que há é uma certa coisa – uma só, diversa para cada um – que Deus está esperando que esse faça. Neste mundo tem maus e bons – todo grau de pessoa. Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não serão bons? Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência; para penar, não se carece: bicho tem dor, e sofre sem saber mais porquê. Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas; também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? Não. Estou dando batalha. É preciso negar que o “Que-Diga” existe. Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem – que Ele é bondade adiante, quero dizer. O senhor escute o buritizal. E meu coração vem comigo. Agora, no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir.”

(Grande sertão: veredas. Primeiro p.127 e, depois, p.325-329, da 19a edição (Nova Fronteira)).

2 comentários:

  1. Não conhecia. Obrigada!
    Um dia, quem sabe, pode ser que nos cruzemos em Santiago de Compostela.
    Abraço e boa semana!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ana, obrigado pela honrosa visita. Se puder, leia o "Grande sertão: veredas". Vale muito a pena. Quanto ao Caminho de Santiago, trata-se grande sonho. Eu o realizo em miniaturas aqui por perto até chegar um dia...
      Abraço.

      Excluir