sábado, 14 de abril de 2012

Crônicas e minicontos III


 – A cidade ajunta as pessoa? Num acho, não! Só se for só no fisicamente.

Ouvi essa fala outro dia. Quem se expressava assim era pessoa já percorrida pelo tempo, alisada pelo vento das idades. Simples e, como ainda acontece com muitos no Brasil, “tem um pé na roça”, ou seja, nasceu no interior, numa cidade pequena ou mesmo numa fazenda, e hoje vive numa cidade grande. Dado do quadro geral do processo de urbanização do país, em plena marcha. Já somos mais gente nas cidades que no campo. Estamos indo também para ser mais velhos que jovens. 

Pois bem, eu comecei a reparar naquilo. Realmente, nas áreas rurais é possível percorrer dois ou seis quilômetros sem topar com casa de morador. Às vezes se topa com a casa, mas não com a cara do morador, que se encontra a um ou outro quilômetro dali, campeando gado ou lavrando a terra. São distâncias marcadas territorialmente, o espaço aí ainda é muito geográfico. Quando se encontram, porém, dois cavaleiros numa estrada, por um caminho qualquer, dificilmente deixam de esbarrar a caminhada, torcerem-se nas selas, descansando os músculos... E aí é prosa. Sendo gente que se conhece, aquilo pode não ter fim; não sendo, depende.

Isso vai praticamente tudo para a cidade pequena. Impossível passar por uma pessoa nesses lugarejos sem, pelo menos, um “opa”, “b’dia”,  “b’tarde”. Não importa se as pessoas já se viram alguma vez ou não. De novo, quando se trata de gente conhecida isso pode ser apenas o início de um livro de conversa. Mil cadernetas, para a atualização do banco de dados com informações de todos os parentes, amigos, conhecidos, prefeito safado, o pasto seco, a demora da chuva, Deus por nós, a Virgem Santa, etc. As casas dos moradores já estão muito mais próximas umas das outros, no entanto. As comadres ou vizinhas podem dispensar a leitura de jornais só com instantâneos de prosa uma de cada lado do muro. Alguns pontos dos muros ficam mesmo ensebados do regular contato dos braços.

Na cidade grande a proximidade física chega ao seu limite. Agora o território é medido em metros, no lugar dos alqueires, hectares ou quilômetros. Já é possível imaginar os centímetros a que estamos destinados. Oito ou dez pessoas já vivem felizes numa área de 200 m2. É quase apenas o espaço de uma cama para cada um (ou dois). As pessoas vão se empilhando nos edifícios, multiplicando os territórios e, então, mil ou duas mil pessoas moram numa mesma coordenada geográfica. Aí ocorre, na máxima proximidade física, objetiva, o encontro com o extremo da distância subjetiva, tão própria da metrópole. É possível verificar facilmente, uma pessoa sair de sua própria casa em direção ao trabalho sem destinar um “bom dia” àqueles que dormiram sob o mesmo teto que o seu.

O espaço próprio da cidade é um não-lugar, são lugares de passagem: as ruas, principalmente, e metonimicamente simbolizada. Mas estou pensando mais é em supermercados, rodoviárias, bares, escolas, clubes, os shopping centers, as mil lojas... Espaços de ninguém, vazios subjetivos. É preciso, inclusive, ter muito cuidado: cumprimentar um desconhecido na rua, com um simples “bom dia”, pode se tornar um caso de polícia. A pessoa cumprimentada pode se sentir ameaçada, perseguida... “Que intimidades são essas? Você me conhece de onde? Tá olhando o quê”, etc, etc. “Bom dia” se tornou ameaçador, ou sinal de mau agouro, e ninguém quer ser ave de mau agouro. Por isso cada um se trava num esforço terrível de nem mesmo olhar para o outro.

Eis a perfeição: internalizar a inexistência do outro. Se a paisagem só existe se humanizada, então na cidade grande os não-lugares são expressões do não-ser. Era uma vez o espaço vivido.

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