terça-feira, 17 de abril de 2012

A Liberdade em Minas VI


"ROMANCE XLII OU
DO SAPATEIRO CAPANEMA 

        'Estes branquinhos do Reino
        nos querem tomar a terra:
        porém, mais tarde ou mais cedo,
        os deitamos fora dela.'

Foi na noite de São Pedro,
no arraial de Matosinhos;
debaixo do meu capote,
vinha tremendo de frio;
fui bater a uma taverna:
o dono estava dormindo.
Bati duas e três vezes,
porém não fui atendido.
Ele, lá dentro, na cama,
como novatinho rico;
e nós, romeiros, na rua,
miseráveis que nem bichos.
Por cima de nós, estrelas,
como preguinhos de vidro.

        'Estes branquinhos do Reino
        nos querem tomar a terra:
        porém, mais tarde ou mais cedo,
        os deitamos fora dela.'

A porta estava fechada,
e vinha um rancho comigo;
conversa puxa conversa,
alguém se lembrou do fisco.
Para a Vila vinha gente,
ia gente para o Rio;
nas Minas, só se falava
das prisões que tinha havido.
Diziam que era levante,
ou contrabando, ou extravio..
Falou-se em crimes, seqüestros,
em soldados e meirinhos.
(O taverneiro na cama,
e eu ali, com os meus amigos.

        'Estes branquinhos do Reino
        nos querem tomar a terra:
        porém, mais tarde ou mais cedo,
        os deitamos fora dela.' 

Fosse de sono, canseira
ou receio de perigo,
- o taverneiro, calado:
e nós, cá de fora, aos gritos.
Até pensei, de tão surdo,
que já não estivesse vivo.
Disse essas quatro verdades.
E o que disse ficou dito.
Cada qual à sua moda
repete o que tinha ouvido:
o taverneiro, a mulata,
o capitão e os vizinhos.
Coso a língua com uma agulha,
se deste enredo me livro!

        'Estes branquinhos do Reino
        nos querem tomar a terra:
        porém, mais tarde ou mais cedo,
        os deitamos fora dela.'

Nada a acrescentar me resta
a quanto já se acha escrito.
Sou da Comarca do Serro,
sapateiro por ofício
(Nunca um trago de aguardente
provocou tal rebuliço!
Nem sabia do levante;
mas, hoje, acho que é preciso.
Se eu só por quatro palavras
nele me vejo metido!
No fundo desta cadeia,
quando penso em meu serviço,
entendo muitas idéias
que antes não tinham sentido! 

        'Estes branquinhos do Reino
        nos querem tomar a terra:
        porém, mais tarde ou mais cedo,
        os deitamos fora dela.'

Sou eu que retalho a sola,
e que desenrolo o fio;
mas nem o dono das botas
sabe qual é seu caminho.
Fui bater a uma taverna
no arraial de Matosinhos:
vim parar numa Cadeia,
para fim desconhecido.
Quem se lembrou do meu nome,
nem era meu inimigo!
Devem ser pontos da Sorte,
no couro do meu destino.
Levo açoites? Subo à forca?
Espero a sentença, e digo:

        'Estes branquinhos do Reino
        nos querem tomar a terra:
        porém, mais tarde ou mais cedo,
        os deitamos fora dela.'

(Assim dizem que falava
o sapateiro mulato.
As quatro razões são suas;
o resto deve ser falso..
Quatro disse - e logo foram
mais de quatro vezes quatro... )"

CECÍLIA MEIRELES, no Romanceiro da Inconfidência, "Romance XLII ou do Sapateiro Capanema".

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