segunda-feira, 9 de abril de 2012

As três mulheres II

“(...) Meu rumo mesmo era o do mais incerto. Viajei, vim, acho que eu não tinha vontade de chegar em nenhuma parte. Com vinte dias de remanchear, e sem as trapalhadas maiores, foi que me encostei para o Rio das Velhas, à vista da barra do Córrego Batistério. Dormi com uma mulher, que muito me agradou – o marido dela estava fora, na redondeza. Ali não dava maleita. De manhã cedo, a mulher me disse: – “Meu pai existe daqui a quarto-de-légua. Vai, lá tu almoça e janta. De noite, se meu marido não tiver voltado, eu te chamo, dando avisos.” Eu falei: – “Você acende uma fogueira naquele alto, eu enxergo, eu cá venho...” Ela falou: – “Ao que não posso, alguém mais avistando havia de poder desconfiar.” Eu falei: – “Assim mesmo, eu quero. Fogueira – uma fogueirinha de nada...” Ela falou: – “Quem sabe eu acendo...” A gente sérios, nem se sorrindo. Aí, eu fui.

Mas o pai dessa mulher era um homem finório de esperto, com o jeito de tirar da gente a conversa que ele constituía. A casa dele – espaçosa, casa-de-telha e caiada – era na beira, ali onde o rio tem mais croas. Se chamava Manoel Inácio, Malinácio dito, e geria uns bons pastos, com cavalhada pastando, e os bois. Me deu almoço, me pôs em fala. Eu estava querendo ser sincero. E notei que ele no falar me encarava e no ouvir piscava os olhos; e, quem encara no falar mas pisca os olhos para ouvir, não gosta muito de soldados. Aos poucos, então, contei: que dos zé-bebelos não tinha querido fazer parte; o que era a valente verdade. – “E Joca Ramiro?” – ele me perguntou. Eu disse, um pouco por me engrandecer e pôr minha prosa, que já tinha servido Joca Ramiro, e com ele conversado. Que, mesmo por isso, é que eu não podia ficar com Zé Bebelo, porque meu seguimento era por Joca Ramiro, em coração em devoção. E falei no meu padrinho Selorico Mendes, e em Aluiz e Alarico Totõe, e de como foi que Joca Ramiro pernoitou em nossa fazenda do São Gregório. Mais coisas decerto eu disse, e aquele homem Malinácio me ouvia, só se fazendo de sossegado. Mas eu percebi que ele não estava. Deu jeito de aconselhar que eu fosse embora. Que ali miasmava braba maleita. Não aceitei. Eu queria esperar, para ver se a fogueira por minha sorte se acendia, eu tinha gostado muito da filha dele casada. Por um instante, o sabido do homem se tardou no que fazer. Mas, eu, requerendo um lugar para armar minha rede na sombra, e descansar – eu disse que não andava bem de saúde, – isso pareceu ser de seu agrado. Me levou para um quarto, onde tinha um jirau com enxergão, me botou lá à la vontade, fechou a porta. Ferrei; abraçado com minhas armas.

Acordei só no aquele Malinácio me chamando para jantar. Cheguei na sala, e dei com outros três homens. Disseram de si que tropeiros eram, e estavam assim vestidos e parecidos. Mas o Malinácio começou a glosar e reproduzir minha conversa tida com ele – disso desgostei, segredos frescos contados não são para todos. E o arrieiro dono da tropa – que era o de cara redonda e pra clara – me fez muita interrogação. Não estive em boas  cócoras. Construí de desconfiar. Não do fato d’ele tal encarecer – pois todo tropeiro sempre muito pergunta; mas do jeito como os outros dois ajudavam aquele a me ver, de tudo perseverado tomando conta. Ele queria saber para onde eu mesmo me ia além. Queria saber por que, se eu punia por Joca Ramiro, e estava em armas, por que então eu não tinha caçado jeito de trotar para o Norte, a fito de com o pessoal ramiros me juntar? Quem desconfia, fica sábio: dizendo como pude, muito confirmei; mas confirmei acrescentando que chegara até ali por dar volta cautelosa, e mesmo para sobre ter a calma de resolver os projetos em meu espírito. Ah, mas ah! – enquanto que me ouviam, mais um homem, tropeiro também, vinha entrando, na soleira da porta. Aguentei aquele nos meus olhos, e recebi um estremecer, em susto desfechado. Mas era um susto de coração alto, parecia a maior alegria.

Soflagrante, conheci. O moço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor quem, mas quem, mesmo? Era o Menino! O Menino, senhor sim, aquele do porto do de-Janeiro, daquilo que lhe contei, o que atravessou o rio comigo, numa bamba canoa, toda a vida. E ele se chegou, eu do banco me levantei. Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho. Arvoamento desses, a gente estatela e não entende; que dirá o senhor, eu contando só assim? Eu queria ir para ele, para abraço, mas minhas coragens não deram. Porque ele faltou com o passo, num rejeito, de acanhamento. Mas me reconheceu, visual. Os olhos nossos donos de nós dois. Sei que deve de ter sido um estabelecimento forte, porque as outras pessoas o novo notaram – isso no estado de tudo percebi. O Menino me deu a mão: e o que mão a mão diz é o curto; às vezes pode ser o mais adivinhado e conteúdo; isto também. E ele como sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo. Ele se chamava o Reinaldo.

Para que referir tudo no narrar, por menos e menor? Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum, sobrefalseado, como do que só em jornal e livro é que se lê. Mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado e verdadeiramente entendido – porque, enquanto coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Do que o que: o real roda e põe diante. – “Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos” – me explicou o compadre meu Quelemém. Que fosse como sendo o trivial do viver feito uma água, dentro dela se esteja, e que tudo ajunta e amortece – só rara vez se consegue subir com a cabeça fora dela, feito um milagre: peixinho pediu. Por quê? Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois. Muito falo, sei; caceteio. Mas porém é preciso. Pois então. Então, o senhor me responda: o amor assim pode vir do demo? Poderá?! Pode vir de um-que-não-existe? Mas o senhor calado convenha. Peço não ter resposta; que, se não, minha confusão aumenta. (...)” (Riobaldo, contando seu segundo encontro com Diadorim, perto do Rio das Velhas, talvez menos de dez anos depois do primeiro. Em Grande sertão: veredas, João Guimarães Rosa, p.152-155).

Fugindo do grupo liderado por Zé Bebelo, Riobaldo vinha, sem rumo: destino nenhum. O segundo encontro com Diadorim aconteceu também pelas mãos de uma mulher, a filha do Malinácio, por cuja fogueira Riobaldo esperava na casa de seu (dela) pai. Para este reencontro, a mulher agora era uma amante. Sem nome.

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