sexta-feira, 15 de junho de 2012

A profundidade


“(...) a profundidade perspectiva da geometria e da pintura ocidental não é mais que um caso particular e materializado de uma espontânea hierarquia das figuras. Nada é mais significativo que o exemplo da pintura: apesar da insipidez funcional das duas dimensões do quadro, recria-se espontaneamente uma terceira dimensão, não só graças aos processos ocidentais do trompe l´oeil, como também numa simples defasagem de valores ou cores que fazem ‘girar’ uma superfície objetivamente plana, mas sobretudo no desenho e na pintura do primitivo, da criança, ou do Egito antigo, a imaginação reconstitui espontaneamente a sua profundeza enquanto as figuras se sobrepõem verticalmente no plano do quadro. É essa a razão essencial pela qual todas as escolas de pintura  ̶ salvo a do renascimento  ̶ desdenham deliberadamente os ‘artifícios’ da perpectiva geométrica, sabendo bem que a terceira dimensão é um fator imaginário acordado a qualquer figura como por acréscimo. É que todo o espaço ‘pensado’ comporta, em si mesmo, domínio da distância, que abstraída do tempo, espontânea e globalmente registrada, torna-se ‘dimensão’ na qual a sucessão do distanciamento se esbate em proveito da simultaneidade das dimensões. Pode parecer pôr-se de parte o tão célebre pseudoproblema que consiste em interrogarmo-nos sobre qual sensação nos provoca a profundidade. Porque a profundidade não é qualitativamente distinta da superfície, pois que o olho se ‘deixa enganar’. Mas é distinta, temporalmente para o esforço e algebricamente para o conceito. Globalmente as três dimensões são dadas no seio da imagem. Do mesmo modo que a nenhum psicólogo se põe o problema de saber de onde vem a primeira ou a segunda dimensão, também não nos devemos interrogar sobre a origem da terceira. É o tempo e a espera que transformam essa dimensão em distanciamento privilegiado, mas primitivamente para o imaginário, como para a vida, para o pintinho que quebra a casca e corre para o verme, o espaço revela-se de pronto com suas três dimensões. O espaço é, constitucionalmente, convite à profundidade, à viagem longínqua. A criança que estende os braços para a lua tem espontaneamente consciência dessa profundidade ao alcance do braço, e só se espanta por não atingir imediatamente a lua: é a substância do tempo que a decepciona, não a profundidade do espaço. Porque a imagem tal como a vida não se aprende: manifesta-se. A ‘relação de conjunto’ dos fragmentos topológicos está ligada à própria concepção desses fragmentos como plurais, ao ato sintético de qualquer pensamento manifesto” .

Gilbert Durand, em As estruturas antropológicas do imaginário, Martins Fontes, 2002, p. 409-11.




6 comentários:

  1. Um texto que pede umas boas taças de vinho....
    Se passaria, então, horas a questionar sobre o que definimos da busca do verdadeiro em suas partes giratórias,e que a forma não impede o seu significado do que é em si como tal, em espécie, forma e conceito...
    [renderia isso boas e altas risadas, de preferencia se olhando uma bela lua cheia...rs]


    Beijao

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    1. Pena eu não beber nada que contenha álcool.
      Obrigado pela sempre honrosa visita e a gentileza do comentário.
      Gilson.

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  2. Sabe aquela identificaçao que pede? é um saquinho e nao serve pra nada....tão facil tirar.

    deixo a sugestao:

    entra em design , clique comentários e depois
    procure:
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    (nao precisa aceitar )

    beijo

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    1. Margoh, recebi essa sugestão há uns seis meses e estou certo de tê-la acatado. O problema é que sou muito lento para as coisas práticas. Acabo de aceitar de novo a sugestão.
      Obrigado por me lembrar.
      Abraço.
      Gilson.

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  3. Das aulas de perspectiva geométrica ginasiais e da análise da profundidade do quadro da Monalisa, posso concluir que a pintura é uma obra estética que atinge a sensibilidade das pessoas de maneiras diversas. A aula de hoje compartilharei. Um abraço, Yayá.

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    1. Olá, Yayá, quanta honra!!
      Aula de Durand, que analisa o triplo caráter da imagem, no que ele chama de 'ocularidade', 'profundidade' e 'ubiquidade'. Esta última desdobrando-se na 'participação' e na 'ambivalência', rompendo-se, assim, a estrutura da lógica aristotélica, que é o de fato me importa nesta lição.

      São fragmentos de textos do meu trabalho no mestrado que, muitas vezes duros de roer, eu os lanço aqui. Fiquei contente que tenha gostado, pois é do principal teórico dentre os que sustentam minha conversa.

      Receba um grande abraço. Bom final de semana.
      Obrigado.
      Gilson.

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