“Se a gente
– conforme compadre meu Quelemém é quem diz – se a gente torna a encarnar
renovado, eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do inimigo. Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó,
vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher
dele, sempre sidos bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado
Valtei – nome moderno, é o que o povo daqui agora apreceia, o senhor sabe. Pois
essezinho, essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o
que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das
espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou
criaçãozinha pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula benta-bêbada dormindo,
arranjou um caco de garrafa, lanhou em três pontos a popa da perna dela. O que
esse menino babeja vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco. – ‘Eu gosto
de matar...’ – uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto;
porque: passarinho que se debruça – o voo já está pronto! Pois, o senhor vigie:
o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro
– botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu nuelo, mesmo
em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele
do sangue, com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino
já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e
entisicou, o tempo todo tosse, tossurada que puxa secos peitos. Arre, que
agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em
pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão – como regulam as sovas
em horas certas confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo bom. Acho que
esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega para a quaresma que
vem... Uê-uê, então?! Não sendo como compadre meu Quelemém quer, que explicação
é que o senhor dava? Aquele menino tinha sido homem. Devia, em balanço,
terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. E, agora, pagava.
Ah, mas, acontece, quando está chorando e penando, ele sofre igual que se fosse
um menino bonzinho... Ave, vi de tudo, neste mundo! Já vi até cavalo com
soluço... – o que é a coisa mais custosa que há.”
Riobaldo, em
Grande sertão: veredas, de João
Guimarães Rosa.
Um trecho dolorido...tão atual.
ResponderExcluirviolência-crença-ética-(des)amor
Precisamos de dias melhores pra sempre!
[contém 1 beijo]
Margoh,
Excluirobrigado pela honrosa vista e contudente comentário, com que concordo plenamente.
Abraço, bom domingo.
Gilson.
],,,"contundente",,,[
ExcluirEsse texto me lembra uns vizinhos que castigavam os filhos e espalhavam um horror na nossa rua.
ResponderExcluirSim, eles existem. Eles mesmos, acho que nem sabem.
ExcluirSeja sempre bem-vinda, Anabela. Bom domingo.
Abraço.
Gilson.
Texto encantadoramente bem escrito, violento mas realista!
ResponderExcluirA educação pela violência não foi ainda erradicada nem mesmo nos chamados de países desenvolvidos e infelizmente as crises económicas que afectam o mundo propiciam o seu crescimento, sendo as crianças as vítimas maioritàriamente as escolhidas, por serem as mais indefesas.Conheço vários casos onde os pais aplicaram este método;não conheço nenhum que desse frutos.Abraço do Vitor.
Creio que frutos dão, Vitor. Discutiríamos a qualidade deles e das "árvores" que os produzem. O centro aqui é o mal nascendo do bem. Duas vezes, pelo menos: o menino Valtei era filho de pais "toda vida tendo sidos bons". O mal veio mesmo assim, do meio do bem. Depois, trabalhando na correção, os pais se acostumam e aprendem o "prazer feio" de agredir, bater. Esse novo mal talvez já fosse velho neles, uma parte oculta que o menino recebeu por recessiva herança. O caso do Aleixo vai trazer o contrário.
ExcluirEu fico muito agradecido pelo fato de você ter se dedicado a ler texto que quase todos julgam difícil, por trazer muitas marcas da oralidade do povo simples do meu país. Ainda mais agradeço por se deter para comentar. Muito contente me faz, Vitor.
Desejo um ótimo domingo para si e todos aí.
Abraço.
Gilson.
Um texto que parece de outro mundo, mas retrata este mundo de forma muito verdadeira e natural...
ResponderExcluirCristina
Cristina, boa tarde!
ExcluirEste seu comentário é simplesmente fantástico. O livro de onde tirei o fragmento fala de um espaço que não existe, realmente, como lugar. É uma região mental para onde o Brasil "joga" tudo que ele não quer ser. Um lugar abjeto, para onde vão os horrores da abjeção, nos termos de Julia Kristeva. Fiquei contente de você tenha feito este comentário.
Abraço, bom final de domingo.
Gilson.