domingo, 24 de junho de 2012

"Moço!: Deus é paciência"


"Tão bem, conforme. O senhor ouvia, eu lhe dizia: o ruim com o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar – Deus espera essa gastança. Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja. O senhor rela faca em faca – e afia – que se raspam. Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que eu penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e carece. Antesmente preciso. Deus não se comparece com refe, não arrocha o regulamento. Pra quê? Deixa: bobo com bobo – um dia, algum estala e aprende: esperta. Só que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta...

Haja? Pois, por um exemplo: faz tempo, fui, de trem, lá em Sete-Lagoas, para partes de consultar um médico, de nome me indicado. Fui vestido bem, e em carro de primeira, por via das dúvidas, não me sombrearem por jagunço antigo. Vai e acontece, que, perto mesmo de mim, defronte, tomou assento, voltando deste brabo Norte, um moço Jazevedão, delegado profissional.Vinha com um capanga dele, um secreta, e eu bem sabia os dois, de que tanto um era ruim, como o outro ruim era. A verdade que diga, primeiro tive o estrito de me desbancar para um longe dali, mudar de meu lugar. Juízo me disse, melhor ficasse. Pois, ficando, olhei. E – lhe falo: nunca vi cara de homem fornecida de bruteza e maldade mais, do que nesse. Como que era urco, trouxo de atarracado, reluzia um cru nos olhos pequenos, e armava um queixo de pedra, sobrancelhonas; não demedia nem testa. Não ria, não se riu nem uma vez; mas, falando ou calado, a gente via sempre dele algum dente, presa pontuda de guará. Arre, e bufava, um poucadinho. Só rosneava curto, baixo, as meias-palavras encrespadas. Vinha reolhando, historiando a papelada – uma a uma as folhas com retratos e com os pretos dos dedos de jagunços, ladrões de cavalos e criminosos de morte. Aquela aplicação de trabalho, numa coisa dessas, gerava a ira na gente. O secreta, xereta, todo perto, sentado junto, atendendo, caprichando de ser cão. Me fez um receio, mas só no bobo do corpo, não no interno das coragens. Uma hora, uma daquelas laudas caiu – e eu me abaixei depressa, sei lá mesmo por que, não quis, não pensei – até hoje crio vergonha disso – apanhei o papel do chão, e entreguei a ele. Daí, digo: eu tive mais raiva, porque fiz aquilo; mas aí já estava feito. O homem nem me olhou, nem disse nenhum agradecimento. Até as solas dos sapatos dele –só vendo – que solas duras grossas, dobradas de enormes, parecendo ferro bronze. Porque eu sabia: esse Jazevedão, quando prendia alguém, a primeira quieta coisa que procedia era que vinha entrando, sem ter que dizer, fingia umas pressas, e ia pisava em cima dos pés descalços dos coitados. E que nessas ocasiões dava gargalhadas, dava... Pois, osga! Entreguei a ele a folha de papel, e fui saindo de lá, por ter mão em mim de não destruir a tiros aquele sujeito. Carnes que muito pesavam... E ele umbigava um princípio de barriga barriguda, que me criou desejos... Com minha brandura, alegre que eu matava. Mas, as barbaridades que esse delegado fez e aconteceu, o senhor nem tem calo em coração para poder me escutar. Conseguiu de muito homem e mulher chorar sangue, por este simples universozinho nosso aqui. Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...

Tanto, digo: Jazevedão – um assim, devia de ter, precisava? Ah, precisa. Couro ruim é que chama ferrão de ponta. Haja que, depois – negócio particular dele – nesta vida ou na outra, cada Jazevedão, cumprido o que tinha, descamba em seu tempo de penar, também, até pagar o que deveu – compadre meu Quelemém está aí, para fiscalizar. O senhor sabe: o perigo que é viver... Mas só do modo, desses, por feio instrumento, foi que a jagunçada se findou. Senhor pensa que Antônio Dó ou Olivino Oliviano iam ficar bonzinhos por pura soletração de si, ou por rogo dos infelizes, ou por sempre ouvir sermão de padre? (...)”

Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.


18 comentários:

  1. Uma historia pra la de interessante,uma viajem talvez alem de suas palavras...
    Guimarães Rosa é nome e bota nome nisso :D

    O Conteúdo do seu blog é obrigação apreciar.

    grande abraço bom domingo!

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    1. E.M,
      obrigado pela visita e por se deter para comentar. Ainda mais comentário assim, tão generoso. Sua observação sobre Guimarães Rosa faz todo sentido. Foi ele mesmo que colocou na boca de Riobaldo: "Muita coisa no mundo falta nome", e também "Tudo nesta vida é muito cantável". Para Ana Maria Machado, o personagem principal da obra de Guimarães Rosa é a palavra.
      Volte sempre.
      Abraços.
      Gilson.

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  2. Não sei se o meu comentário terá entrado. Aqui vai de novo.

    Guimarães Rosa é uma referência.

    Saliento o excerto "O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal..."

    O sertão agora espalhou-se - é todo o mundo...

    Beijo

    Laura

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    1. Laura, cá está seu comentário, brilhante, ele. Há vários momentos na obra de de Guimarães Rosa em que esta sua afirmação ("o sertão agora... é todo o mundo") pode ser verificada. No romance "Grande sertão: veredas" a ideia aparece escrita: "o sertão está em toda parte" ou "o sertão é do tamanho do mundo". Eu acredito, coincidindo com você, que o "sertão" em GR coincide com o mundo. Desde que o Homem "caiu" aqui.
      Não sei se você imagina o quanto engrandece este espaçozinho aqui com sua presença, leitura atenta e comentários tão pertinentes.
      Obrigado.
      Beijo.
      Gilson.

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    2. Laura, ele diz ainda mais: que "o sertão tá dentro da gente".
      Abraço.
      Gilson.

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    3. Diz isso e é mais abrangente porque o "tá dentro da gente" reduz o sertão à individualidade de cada um. E é nessa visão/ação individual que cada um se projeta no vasto e caótico sertão do mundo - uma espécie de Torre de Babel ou uma amostragem do Sermão de Sto António aos Peixes de Padre António Vieira.

      "Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! "

      e, mais à frente, ainda do mesmo Sermão:

      "Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.

      Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós."

      Beijo

      Laura

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    4. Diz isso e é mais abrangente porque o "tá dentro da gente" reduz o sertão à individualidade de cada um. E é nessa visão/ação individual que cada um se projeta no vasto e caótico sertão do mundo - uma espécie de Torre de Babel ou uma amostragem do Sermão de Sto António aos Peixes de Padre António Vieira.

      "Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! "

      e, mais à frente, ainda do mesmo Sermão:

      "Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.

      Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós."

      Beijo

      Laura

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    5. Laura, eu, de minha parte, tivesse vivido no XVII não perderia uma missa do Pe. Vieira. Talvez saísse mais cedo de algumas delas, mas estaria presente a todas. Foi um homem tremendo! Ele mesmo o próprio barroco.

      Ainda em relação a Vieira, aqui no Brasil há quem o ame e quem o odeie em igual medida(basta mencionar o nome numa roda e já teremos dez a comentar), mas creio que todos o admiram a altura e o quanto foi açoitado pelas "ideias fora do lugar", pela "máquina mercante" e até por seus pares de Igreja, realidade tão pungente por ele vivida. E é bem que se diga que as ideias estavam "fora do lugar" já mesmo na Europa, que passava, também ela, de "um mundo a outro" sem sair do lugar.

      Agradeço imensamente o seu contributo, especialmente pela lembrança de Pe. Vieira. Você me trouxe à memória a discussão sobre a lucidez possível e a retórica.

      Beijo.
      Gilson.

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  3. Gilson, este texto como o último que comentei são verdadeiras pérolas!
    É lamentável que estas obras não cheguem às nossas livrarias.O vocabulário é muito específico, não é fácil de entender mas no contextoda
    narrativa torna-se compreensível.
    A crença de que a paciência de Deus é tão grande que espera que a justiça dos homens seja feita pelos próprios homens maus entre si; e a constatação
    da rudeza do sertão, tão grande que lá manda a força dos homens, ao ponto de, até Deus, se lá for, convir que vá armado,são testemunhos de uma sociedade rude em que o poder do homem se sobrepõe ao poder de Deus e onde prevalece o princípio que por cá se traduz na máxima: -"Cá se fazem, cá se pagam".
    Texto lindo alusivo, presumo, ao período da hegemonia dos coronéis?!
    Um abraço e boa semana. Vitor.

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    1. Concordo, Vitor.
      Eu não posso acreditar que os livros de Guimarães Rosa não estejam disponíveis aí. Será mesmo de espantar, sendo verdade.
      Como sempre, sua observação é precisa, fruto de uma leitura apurada, atenta. Com GR é preciso ser assim, pois ele dizia que desperdiçava palavra. Ana Maria Machado, uma estudiosa de sua obra, defende que o principal personagem de GR seja a palavra, ela mesma. Como a querer dizer que o homem é o que ele diz. Parece ter razão, quando lembramos que o mundo teria sido criado pelo verbo, sopro divino. A palavra é vento que se articula.
      Fico muito satisfeito de tê-lo aqui, enriquecendo este humilde espaço com seus comentários. Obrigado.
      Grande abraço, Vitor.
      Gilson.

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    2. Vitor, desculpa, mas faltou um "não" numa sentença da minha resposta e você deve ter percebido. Fica assim, então, para constar: "Ele dizia que NÃO desperdiçava palavra".
      Obrigado.
      Gilson.

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  4. OI GILSON!
    MESMO COM A COMPLEXIDADE DA ESCRITA, DÁ PARA ENTENDER O TEXTO...
    ABRÇS

    zilanicelia.blogspot.com.br/
    Click AQUI

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    1. Obrigado, Lani, pela visita, que engrandece este humilde espaço, sempre.
      Abraço.
      Gilson.

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  5. Disculpa que no te lea, ya me retiro a descansar, pero deseo agradecerte tu visita, ya no leo bien, llevo horas delante la pantalla y me vence el sueño.
    Déjame darte un beso de ternura.
    Sor.Cecilia

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    1. No hay lo que disculpar, pelo lo que agradecer, por tu honorable visita y comentarrio.
      Sea siempre con Dios.
      Beso de ternura.
      Gracias.
      Gilson.

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  6. " Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que eu penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e carece."

    Tão certo isso!


    Beijo

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  7. Olá, Margoh, quanta honra recebê-la.
    Coincidimos na avaliação. E que tal isto?

    " - O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais."

    De Guimarães Rosa também, no mesmo livro.
    Abraço.
    Gilson.

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