sábado, 23 de junho de 2012

Mal bem aprendido


Se a gente – conforme compadre meu Quelemém é quem diz – se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do inimigo. Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtei – nome moderno, é o que o povo daqui agora apreceia, o senhor sabe. Pois essezinho, essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou criaçãozinha pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula benta-bêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três pontos a popa da perna dela. O que esse menino babeja vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco. – ‘Eu gosto de matar...’ – uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça – o voo já está pronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro – botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do sangue, com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossurada que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão – como regulam as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo bom. Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega para a quaresma que vem... Uê-uê, então?! Não sendo como compadre meu Quelemém quer, que explicação é que o senhor dava? Aquele menino tinha sido homem. Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorando e penando, ele sofre igual que se fosse um menino bonzinho... Ave, vi de tudo, neste mundo! Já vi até cavalo com soluço... – o que é a coisa mais custosa que há.”

Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.



9 comentários:

  1. Um trecho dolorido...tão atual.

    violência-crença-ética-(des)amor


    Precisamos de dias melhores pra sempre!


    [contém 1 beijo]

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    1. Margoh,
      obrigado pela honrosa vista e contudente comentário, com que concordo plenamente.
      Abraço, bom domingo.
      Gilson.

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  2. Esse texto me lembra uns vizinhos que castigavam os filhos e espalhavam um horror na nossa rua.

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    1. Sim, eles existem. Eles mesmos, acho que nem sabem.
      Seja sempre bem-vinda, Anabela. Bom domingo.
      Abraço.
      Gilson.

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  3. Texto encantadoramente bem escrito, violento mas realista!
    A educação pela violência não foi ainda erradicada nem mesmo nos chamados de países desenvolvidos e infelizmente as crises económicas que afectam o mundo propiciam o seu crescimento, sendo as crianças as vítimas maioritàriamente as escolhidas, por serem as mais indefesas.Conheço vários casos onde os pais aplicaram este método;não conheço nenhum que desse frutos.Abraço do Vitor.

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    1. Creio que frutos dão, Vitor. Discutiríamos a qualidade deles e das "árvores" que os produzem. O centro aqui é o mal nascendo do bem. Duas vezes, pelo menos: o menino Valtei era filho de pais "toda vida tendo sidos bons". O mal veio mesmo assim, do meio do bem. Depois, trabalhando na correção, os pais se acostumam e aprendem o "prazer feio" de agredir, bater. Esse novo mal talvez já fosse velho neles, uma parte oculta que o menino recebeu por recessiva herança. O caso do Aleixo vai trazer o contrário.
      Eu fico muito agradecido pelo fato de você ter se dedicado a ler texto que quase todos julgam difícil, por trazer muitas marcas da oralidade do povo simples do meu país. Ainda mais agradeço por se deter para comentar. Muito contente me faz, Vitor.
      Desejo um ótimo domingo para si e todos aí.
      Abraço.
      Gilson.

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  4. Um texto que parece de outro mundo, mas retrata este mundo de forma muito verdadeira e natural...

    Cristina

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    1. Cristina, boa tarde!
      Este seu comentário é simplesmente fantástico. O livro de onde tirei o fragmento fala de um espaço que não existe, realmente, como lugar. É uma região mental para onde o Brasil "joga" tudo que ele não quer ser. Um lugar abjeto, para onde vão os horrores da abjeção, nos termos de Julia Kristeva. Fiquei contente de você tenha feito este comentário.
      Abraço, bom final de domingo.
      Gilson.

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