sábado, 23 de junho de 2012

Bem que se aprende


Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor – compadre meu Quelemém, diz. Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois – e Deus, junto. Vi muitas nuvens. 

Mas, em verdade, filho, também, abranda. Olhe: um chamado Aleixo, residente a légua do Passo do Pubo, no da- Areia, era o homem de maiores ruindades calmas que já se viu. Me agradou que perto da casa dele tinha um açudinho, entre as palmeiras, com traíras, pra-almas de enormes, desenormes, ao real, que receberam fama; o Aleixo dava de comer a elas, em horas justas, elas se acostumaram a se assim das locas, para papar, semelhavam ser peixes ensinados. Um dia, só por graça rústica, ele matou um velhinho que por lá passou, desvalido rogando esmola .O senhor não duvide – tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão. Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos; aqueles eram o amor dele, todo, despropósito. Dê bem, que não nem um ano estava passado, de se matar o velhinho pobre, e os meninos do Aleixo aí adoeceram. Andaço de sarampão, se disse, mas complicado; eles nunca saravam. Quando, então, sararam. Mas os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama desapiranga à rebelde; e susseguinte – o que não sei é se foram todos duma vez, ou um logo e logo outro e outro – eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de luz dessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha – três meninos e uma menina – todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não perdeu o juizo; mas mudou: ah, demudou completo – agora vive da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite e do dia. Parece até que ficou o feliz, que antes não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter pena dele, transformar para lá o rumo de sua alma. Isso eu ouvi, e me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?! Compadre meu Quelemém reprovou minhas incertezas. Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que acha? E o velhinho assassinado? – eu sei que o senhor vai discutir. Pois, também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, por pagar.”

Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.


8 comentários:

  1. Compartiremos nuestros caminos porque es verdad, siempre se aprende. Intercambiar y compartir es como una ventana abierta a la vida. Besicos desde el Pirineo.

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    1. Me ha traedo ya un poquito felicidad. El Pirineo es muy hermoso desde su Bosque y su percepción de el. Perdoname las palabras en español. A veces pienso que sea mejor dejar a google lo trabajo de traducirlas. Sea bienvenida siempre.
      Muchas gracias por acompañar este simple espacio.
      Saludos desde o "sertão" do Brasil.
      Gilson.

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  2. "Tudo é e não é"...no compasso serrado da vida e a carta que escreve ao "Senhor" é muito bela e
    percebível. Há quem goste de matar, só por matar...há quem goste de se fazer notar...só por notar...
    E a pergunta ficará sem resposta...isso é a única coisa que sei!

    Belo texto,

    Maria luísa Adães (os7degraus")

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    1. Maria Luisa Adães, quanto honra este humilde espaço com sua visita e comentário! Obrigado.
      O trecho foi retirado do livro "Grande sertão: veredas", do escritor João Guimarães Rosa, meu objeto de estudo no mestrado. Ele parece não querer mesmo trazer respostas. Pelo menos respostas prontas.
      Volte sempre.
      Abraço.
      Gilson.

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  3. .

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    . um tributo . onde o oximoro é constante .

    .

    . um abraço .

    .

    .

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    1. Acertas sempre!
      "Grande sertão: veredas" é retórico e quer a determinação do antidestino, só possível no espaço vivido. É no espaço que se repousa, ou na ausência do tempo. A constância, ou duração, é espacial.
      Obrigado pela honrosa visita e pelo comentário, que percebe a mecânica oriental em ação.
      Um abraço.
      Gilson.

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  4. Gostei muito do texto!
    Dá para reflectir bastante.

    Cristina
    queriadeti.blogspot.com

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    1. Cristina,
      concordo com você. Parabéns a João Guimrães Rosa. Quanto a mim, mais que refletir, tenho que escrever sobre.
      Grande Abraço.
      Gilson.

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