domingo, 4 de março de 2012

Alquimia I

“(...) Deus é um gatilho?
Mas conto menos do que foi: a meio, por em dobro não contar. Assim seja que o senhor uma idéia se faça. Altas misérias nossas. Mesmo eu – que, o senhor já viu, reviro retentiva com espelho cem-dobro de lumes, e tudo, graúdo e miúdo, guardo – mesmo eu não acerto no descrever o que se passou assim, passamos, cercados, guerreantes dentro da Casa dos Tucanos, pelas balas dos capangas do Hermógenes, por causa. Vá de retro! – nanje os dias e as noites não recordo. Digo os seis, e acho que minto; se der por os cinco ou quatro, não minto mais? Só foi um tempo. Só que alargou demora de anos – às vezes achei; ou às vezes também, por diverso sentir, acho que se perpassou, zúo de um minuto mito: briga de beija-flor. Agora, que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a lembrança demuda de valor – se transforma, se compõe, em uma espécie de decorrido formoso. Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda: que as árvores das beiradas mal nem vejo... Quem me entende? O que eu queira. Os fatos passados obedecem à gente; os em vir, também. Só o poder do presente é que é furiável? Não. Esse obedece igual – e é o que é. Isto, já aprendi. A bobéia? Pois, de mim, isto o que é, o senhor saiba – é lavar ouro. Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade?”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19ª edição. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001, p.359.

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