domingo, 14 de agosto de 2011

O Espaço imaginário


A casa do Rosa em Cordisburgo-MG

O Lugar

O Sertão é do tamanho do mundo.
Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.


Essa rosa aqui eu a cultivo há quase trinta anos. Ela é testemunha das nuvens todas que povoaram meu espírito desde que entrei pela primeira vez nesta casa. Nuvens de poeira, visíveis claramente pelas lâminas de luz que penetravam o ambiente. Num susto, algo me fez parecer com aquela luz penetrante. Neguei essa imagem imediatamente. Mais certeza tinha era de que eu fazia parte da poeira que levantava a cada passo que dava. A casa podia ser vista, de fora e por dentro: tinha paredes, em que se podia ver cores, partes mais desgastadas, janelas e portas, chão e teto, moradores, tudo. Eis a primeira dificuldade: eu podia ver mas não podia sentir esses limites e essas presenças. Era como se eu estivesse entrando num espaço vazio, mergulhando num abismo de estrutura e de comunicação, pois era possível transpor paredes. Estive aqui mais duas vezes antes de me decidir vir morar neste lugar em que, de alguma maneira, frequento há quase três décadas.

Esta foi apenas a primeira impressão. Uma impressão de poeta, talvez, e outras viriam para se colocar sobre ela.

Percebi, num certo dia, ao amanhecer, que não era eu que habitava a casa, convivendo com aquelas pessoas. Era aquele espaço, com aquela gente toda, que moravam em mim. Lembre-me bem que esta sensação causou-me ainda mais estranhamento que o fato de poder atravessar paredes e não ser percebido pelos outros moradores. Isso se deu naquela manhã porque tive a certeza de que não importava mais onde eu estivesse: eu estava no mesmo lugar, estava sempre naquela casa, com a roseira a dois pés da janela. Duas coisas consegui articular daquilo tudo. Primeiro: se, onde quer que eu estivesse eu estava sempre no mesmo lugar, aquela casa tinha que ser o próprio mundo, o que não era nem minimamente razoável. Segundo: se, por mais que eu atentasse os ouvidos, não conseguia ouvir dos moradores uma palavra sequer que não se referisse àquele lugar, eu só podia pensar que não conhecessem outra casa. Meu pudor de lucidez não me permitiu jamais tentar conversar com um deles. Apenas os ouvia e eles de mim jamais ouviram uma só palavra.

Devo ter dormido e não vi, mas num outro dia acordei e a casa havia “pegado fogo”. Um incêndio horrível, como contavam.

O episódio do incêndio teria acontecido muito tempo depois, talvez quinze anos. Eu não vi, me contaram: “Queimou tudo. O que não era, essencialmente, a casa foi destruído. Mesmo alguns pedaços dela sofreram avarias: as calçadas laterais, com assoalho feito com madeira de butiti; partes pequenas das paredes estragaram... Ninguém, nenhum de nós foi ferido”. Devia ter dormido profundamente, pois não percebi absolutamente nada. Olhei em volta e estavam todos ali. Aquela gente que já conhecia a ponto de me ser familiar, aquele velho contando uma história sem fim àquele moço paciente...

Foi quando alguém se aproximou de mim e me explicou o caso do fogo que atingiu e danificou a casa e, no que para ele era uma oferta, perguntou se eu não queria ser o dono da casa a partir daquele dia. “Ela precisa de reformas, uma limpeza, mas ainda está muito boa, se quiser repará-la, é sua”.  Na verdade eu já me sentia em casa ali, como se a casa tivesse sido minha desde a primeira vez que ali entrei, e devo dizer que esse sentimento eu o percebia nos outros moradores. Mesmo assim apertei a mão do colega, como que fechando um negócio. Em menos de uma semana, com a ajuda de uma ou duas pessoas, reformei toda a casa, que ficou um tanto de diferente na aparência (talvez menor), mas era a mesma casa de sempre. Principalmente o que ela significava para mim, nisso não mudou nada.

O que mudou muito a partir de então foi a minha forma de me relacionar com a casa e seus moradores. Passei a estudá-los.

Ao começar a estudar a casa, sempre a regar, diariamente, aquela rosa, minha primeira descoberta foi a de que eu não estava sozinho nesse esforço. Isso me trouxe um sopro de ânimo: eu tinha companhia com quem compartilhar o que fosse desenvolvendo. Depois, logo depois, percebi que, na verdade, estava diante de uma dificuldade. A casa era já uma espécie de esfinge a desafiar quem, como eu, decidisse saber o que ela era. Quanto pior por causa das inúmeras afirmações que se faziam sobre ela. Era como numa escavação em que se fossem descobrindo uma cidade sobre outra, que havia sido construída sobre outra e outra... Várias camadas de tinta na parede, mas isso para as pessoas que estudavam o lugar; a casa, propriamente, podia se dizer que ninguém sabia o que era.

Os estudiosos se, acho que não perceberam a rosa. Antes de preocuparam com sua arquitetura, fisicamente falando: chão, paredes, formas dos telhados. Outros dirigiram seus estudos aos aspectos da linguagem dos moradores, seu jeito de falar, sua sintaxe, seu léxico. Havia ainda aqueles que buscavam as origens da construção, numa espécie de estudo de genética, buscando linhas de parentesco de suas formas com outras formas, comparando, comparando... Decidi-me pelo mistério: aceitar a casa e a rosa como elas me surpreenderam um dia.

Essa decisão me levou imediatamente ao velho que contava aquela história interminável àquele moço paciente à sua frente.

Numa manhã, sentei-me no degrau da varanda, num ponto que me possibilitasse ouvir a conversa do velho com seu amigo. Percebi logo duas coisas que me causaram estranhamento: primeiro, vi que estava do lado da roseira, para junto da qual fui parar sem atinar nisso; segundo, a “conversa” não se tratava exatamente de um diálogo, porque era só o velho que falava. O outro tomava algumas muitas notas. Numa espécie de epifania, descobri que aquele lugar estava perfeitamente descrito pelas palavras do velho, como se fossem elas o seu criador. Tudo ali, a casa, seus moradores, móveis, armas, tudo estava nas palavras do velho.

Como se fosse um deus, ele dizia e as coisas eram tal qual ele dizia. Ele falava e eu conferia: era. No mínimo, parecia muito. Assustei-me: eu não tinha mais dúvidas sobre o lugar onde estava: tratava-se de um labirinto. Tinha à minha volta cerca de 1500 caminhos possíveis, que tinha ouvido daqueles que também estavam estudando a casa. Um desses caminhos me levaria à saída, mas, como é clássico em situações como essa, esquecia-me de mim. Não me lembrava sequer de meu nome, às vezes. Na verdade, como se diz, nesses casos desaparecem todos os nomes e o tempo é submetido ao espaço. Eis o espaço do labirinto, e era onde eu me encontrava. Só pensava na saída. A saída.

Lembrei-me de Teseu e de Ariadne e concluí que o meu fio era tecido pelas palavras daquele velho. Elas me tirariam dali pela revelação do lugar onde estava.

O Minotauro era o mundo inventado. A partir desse momento não via outro jeito que não fosse refazer todo o meu raciocínio. E comecei logo. Já sabia que aquele lugar era uma invenção daquele velho. Poderia chamá-lo também de mentira, ficção, sonho, ou ainda outros nomes, mas não era isso que importava. O fato era que o mundo criado pelas palavras daquele velho, com aquela sua história interminável, sem tempo, havia sido aceito por mim, que o reconheci como uma objetividade. Algo que existia. Nesse momento olhei para a roseira e ela era. Eu não estava sonhando: eu e aquela roseira, pelo menos, éramos reais. Pensei naquele momento que havia encontrado a primeira chave: eu deveria incorporar o sonho como uma das dimensões da realidade. A imaginação daquele velho mentiroso estava me convencendo disso.

Ali, com a certeza que se pode ter, a dona da casa não era a razão. Pelo menos como sonha a nossa vã filosofia. A imaginação morava ali e não era louca. Mentiras... Ora, mentiras... Depois, seguindo no caminho – pensei ou senti – eu deveria atravessar todo aquele emaranhado de palavras para, também eu, ser capaz de realizar o trabalho de mentir, inventar, refazer o percurso da história, e, para isso, eu só tinha as palavras daquele que a contava. Então, novo susto. Desconfiei e vi a possibilidade de que aquele senhor que aparentemente tinha inventado aquela casa do tamanho do mundo, também ele poderia muito bem ser parte da invenção.

Por quê? Por causa do moço à sua frente, tomando aquelas algumas muitas notas. Aquele velho não existia: também era inventado e foi criado pelo moço calado que fingia anotar o conto do outro.

Logo, ex-isto, como já disse alguém. Estava agora bastante claro para mim que o moço que fazia as muitas anotações naquela caderneta era também inventado. Só podia. Ali ele não falava, como já mencionei aqui. O processo parecia elementar: ele ouvia a história do velho e depois inventava tudo, como se fosse dele a invenção do mundo. Digo que ele também era inventado porque o mundo já estava ali, ele no meio. O labirinto era o mundo (do velho) dentro do mundo (do moço copista) dentro do mundo (de quem?)...

Eu vendo, lendo, vivendo, reconheci aquele espaço como meu, uma história mil vezes contada e de novo contada. O tempo suspenso na dimensão do mito. A matéria vertente na mente do observador. Eu ainda estou aqui.

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