quarta-feira, 21 de maio de 2014

Palavras ao vento



O som do mar fez do meu ouvido um caracol; 0 meu amor se foi embora dizendo me amar; a janela do meu escritório me deixa ver o sol; subo só e eu quero com o mar sonhar, calado: na caverna alta rabiscar seu nome em muitas línguas. Deixar lá as muitas vozes de mim, que só você poderia ter escutado.


Não vivo a volúpia demoníaca do amanhã, essa vontade inconfessada de não querer existir. Hoje foi amanhã ontem. Acredito no instante: naquele instante exato em que me disse do meu medo de ser feliz. Deixa, deixa-me dizer: essas palavras transbordam, me sobram, já nem são minhas (escapam, fogem de mim). Essas filhas do vento, um dia em mim insufladas...

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Imagem: Google images
Texto: Gilson.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Porosidade



Somos seres porosos.
Há poros menores; há poros maiores.
Há os poros mínimos e os enormes...
Mas a vida passa por nós é por esses vazios.

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Imagem: Google images
Texto: Gilson.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Amanhecer é uma lição do universo


Comendo fumaça na corda bamba
[sem sombrinha e sem circo].
Da senzala não passo com meu samba:
Sinhá foge a denunciar ao Senhor.
[de noite, ela mesma se senta na varanda a ouvir].
Pimenta para cheirar e as estrelas [no céu a subir]...
Para deitar na grama e contar.

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Título: verso da canção de Renato Teixeira
Imagem: Red Rose, Graham Fagen
Texto: Gilson.

domingo, 18 de maio de 2014

Três Pedros



― A notícia que Pedro esperava com ansiedade tamanha, em sua vida livre na grande fazenda do pai, chegou ao amanhecer: “Olhinhos pariu esta noite, são sete gatinhos, precisa ver o tanto que são pequeninos. Venha”. Era a voz de Dontinha, que, a esta altura sacudia Pedro na cama.
Talvez temendo algum acontecimento ruim, Dontinha esperou que o pai de Pedro saísse para a lida diária, para só depois chamar o menino. Pedro nunca teve preguiça de sair da cama, mas naquele dia, ainda escurozinho, num salto o menino já estava no canto da cozinha. Perto do grande fogão a lenha, junto dos panos que Dontinha havia arrumado para Olhinhos ter seus filhotes, deslumbrou-se com o tamanhozinho dos bichinhos, ainda de olhos fechados, sujeitos à lambeção da mãe. Nos seus quase oito anos já havia visto a cria de todo tipo de animal vivente na fazenda, mas era a primeira vez que via os de uma gata. Olhinhos era de Dontinha, que ajudava a mãe de Pedro na arrumação da enorme casa e era mulher de um meeiro de seu pai.
Passou toda a manhã observando os movimentos naquele espaço da casa. Os filhotes começaram logo cedo a emitir seus sons miados e eram muitos.
O sol estava a pino quando o pai chegou. Tinha na cara um ar de assombro e, nas mãos um saco de linhagem, desses de 60 quilos com que se carregam arroz e feijão para a cooperativa. Num gesto brusco, recolheu panos e filhotes e jogou tudo no saco, estendendo-o para o menino assustado.
― Pedro, pegue, arrume um cavalo, vá até o rio e jogue isso lá. Jogue com força, o mais longe que puder, dentro do rio.
Pedro fez o que o pai mandou ― não ousava questioná-lo ― e rumou em direção do rio. Não podia, porém, cumprir aquela ordem de jogar os animaizinhos na água. Não podia. Iria mentir, fingir que jogasse, fazia de conta e pronto. Tinha só que arrumar lugar para eles, e comida. A criação veio rapidamente: a Olhinhos tinha a comida deles e deveria desaparecer também. Contou para o pai, à noite, que havia jogado a gata e seus filhotes no rio, assim ficavam livres do problema para sempre. Nunca se saberá o que o pai pensou daquilo.
Pedro, enquanto esteve na fazenda, até o fim daquele ano, ia, todos os dias, furtivamente, visitar Dontinha, que cuidava, cúmplice, de Olhinhos e de seus filhotes. Ele pediu para dar nome a um deles e Dontinha gostou da ideia, apesar de informar que já vinha chamando cada um por um nome.
― Não tem problema. Essa aqui será a Sete Vidas Minhas.
Dontinha soltou uma gargalhada linda:
― Moleque...
A memória da gente é porque não ajuda mais. As ideias vão se remexendo dentro, umas se adiantando, outras se atrasando: tudo mudando de lugar. O que me honra é esse seu querer me ouvir. Por isso vou tentando contar. Naquele tempo ainda existia aqui na banda de baixo dessa mata, umas quinze léguas, deve ser... Então, existia ainda a Fazenda do Seu João Juvêncio. Fazendão de homem de riquezas, muito boi, muito pasto e muita roça ainda tinha. O senhor vai lá hoje e não vê mais nada, coisa triste. Acabou.
Então. naquele tempo, que eu falava, nasceu ali uma criança. Um menino. Conto mal: claro que nasceram lá muitas crianças. O que eu quero dizer é que nasceu o menino que é o da estória que eu conto, e que você espera que eu conte. Você sabe: nasciam ali eram apenas os filhos dos meeiros, empregados e capangas do Seu João Juvêncio, porque os filhos dos homens ricos nascem é em hospital de cidade. Sempre foi assim. Quando morrem, estes, também é lá, nos hospitais das cidades. Pobres, não: os filhos desses nasciam onde estavam; e morrem quando e onde Deus quisesse. Tudo isso estou dizendo para nada, pois, se é, já é coisa que você, tão instruído, deve saber e muito mais do que eu mesmo. Bobeio.

Esse menino que nasceu na Fazenda que existiu ali era filho do Nêgo e da Dontinha. Nêgo era meeiro do Seu João Juvêncio, e também existiu sempre na Fazenda. Ele e Dontinha, sua mulher, eram do tempo de Vô Tonico, pois era desse que João Juvêncio tinha herdado as terras da Fazenda. Vô Tonico era o pai da Sinhá Lina e sogro, então, na época, de João Juvêncio. Nascido o menino, ele cresceu solto por esses campos todos. Você verá: esses espaços não têm tamanho, mundo sem beirada a nenhuma. A gente procura e é só o que existe. Os capões de mato, o capoeirão, o cerradinho, os campos limpos, as roças e os roçados, os ribeirõezinhos, riachinhos, rios, rios. Cerca você verá, mas naquele tempo também não tinha. Este menino, este que nasceu, que conto a você, era quase igual a esse mato aí. Sempre se alegrava: com a chuva, que lavava sua cara; com o sol, que o fazia ver mais cores em tudo que era coisa que existia. Pedro se chamava. Um outro Pedro, de antes.


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Texto e imagem: Gilson.

sábado, 17 de maio de 2014

Lamento


Acreditas que eu volte?
Não, certo?
Só quem se foi pode voltar?
Como se pode assim sempre ficar?
Deixar-me é impossível?
Deixar-te me será assim sempre impossível?
Então, volto para o mesmo lugar de onde parti,
[como se o conhecesse pela primeira vez,
[assim como nos ensinou o velho Eliot?

Ele nos ensinou isso?

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Texto e imagem: Gilson.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Tu te lembras?



Tu te lembras daquele abraço,
de reencontro e notícia de Zeus no ouvido?

Tu te lembras daquela estrada,
em que o mar, água tanta, passava por baixo?

Tu te lembras daquela Salvador,
em que chorei, sob chuva, cheio de certezas?

Então!

O reencontro [antes tão certo]...
hoje se confunde, evanescente:

névoas, nuvens, dores e fumaça de cigarros!


].Texto e imagem: Gilson.[

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Seguir vivendo...





Queria ser bem velho para poder ter visto se encontrarem e chegarem juntos a Belém os três reis do Oriente. Queria ter sabido como se encontraram. Contento-me em me deixar guiar pela poesia de Sophia.


Queria ser velho, mas muito velho mesmo. Ter todas as idades para poder ter visto, em campo, jogarem Pelé e Eusébio.





Quero ser mais que velho gagá, ãhã! Quero ficar um velho gagá, caquético e repetitivo, capaz de contar a mesma estória, para a mesma pessoa, dezenas de vezes. Para pessoas diferentes, contar-se-ia às centenas. Ah, ser um ancião. Quero ser translúcido: a luz passaria por mim, sem refletir, indicando que pouco de material restava. A caquexia será de grande ajuda: dois terços do que se produz no mundo, hoje, podem ser classificados como lixo, e eu estaria quase livre de ouvir e ver isso chegar perto dos quatro quintos. Esse ranço, graças a Deus, já é sinal de que estou envelhecendo. Na verdade, sempre senti essa nostalgia do Paraíso, que um dia sei que traduzirei por sonsice de velho. Ou, talvez, poesia. Isto será meu último orgulho. A minha sonsice de velho me elevará a senhor do meu silêncio, essa centelha divina que mora em mim e que, ainda jovem, a palavra trai.

Imagens: Google
Texto: Gilson. 


terça-feira, 31 de dezembro de 2013

A casa é sua



FELIZ ANO NOVO A TODO(A)S !!!

A lágrima fria corta a face direita, eu não lavo o chão para alguém ver; eu o lavo pra mim, meus olhos, pés. Gosto de sentir o frio limpo do contato de meus pés com o piso: posso me deitar ali se quiser. Não pinto as paredes para que alguém veja, para que alguém goste e elogie e queira comprar e sorrie, levantando os braços bem alto, batendo as mãos. Não, definitivamente. Corrijo as imperfeições das paredes porque as quero lisas para mim, para eu poder me recostar nelas, olhos perdidos no ar, longe nem sei de onde. A partir de mim é que me lanço. Eu sei que a casa é sua.




Vida Maria from Fernanda Guizan on Vimeo.