domingo, 17 de julho de 2011

Para a dimensão da noite 1

Funchal, Ilha da Madeira

Eixo da discussão em “Educação pela noite”,  de Antonio Candido.

1
Come, thick night
And pall thee in the dunnest smoke of hell  (Shakespeare, MACBETH).

Indicação da produção, com destaque para Macário e A noite na taverna. Álvares de Azevedo teria apoiado sua produção literária em estudos críticos destacáveis: o prólogo para o Macário e prefácio da segunda parte para a Lira dos vinte anos. Neste último a binomia, o choque dos contrários, um dos pressupostos da estética romântica. Esforço de superação das diferencias entre os gêneros literários. Mistura do “horrível” com o “sublime, belo, doce e meigo”. A tensão não se sustenta e no extremo resulta em textos de qualidade menor. Na psicologia, margens; na estrutura, desordem. Ressalva importante: toda a obra do autor é publicada após sua morte, portanto à revelia, deixando a dúvida sobre se a desorganização ou desnível dos textos é deliberada ou não.

2
A estrutura da primeira parte do Macário. A ação se passa toda à noite. Articulação de humor, debate moral e psicológico. Jogo entre interior e exterior: 1ª cena (interior)=quarto da estalagem; 2ª cena (exterior)=caminho da cidade; 3ª cena (interior)=sala na casa de Satan; 4ª cena (exterior)=cemitério e 5ª cena (interior)=quarto da estalagem. Tensão entre o cinismo ingênuo do adolescente Macário e o cinismo autêntico de Satan. O sonho de Macário sobre um túmulo é explicado por Satan: “Suspiro de sua mãe moribunda, gemido noturno da Natureza”. Uma atmosfera de sonho liga a primeira à última cena de Macário. Satan descreve a cidade de São Paulo com sarcasmo, desencanto e poesia. A Invenção literária da cidade de São Paulo; espaço ficcional instaurado por Álvares de Azevedo. O noturno aveludado e acre do Macário suscitou a noite paulistana como tema, caracterizado pelo mistério, o vício, a sedução do marginal, a inquietude e todos os abismos da personalidade, numa dimensão quase mitológica. A segunda parte é dominada por Penseroso, personagem de tom angélico, em oposição ao demônio, guia da primeira parte. Ainda a noite e o ambiente fantasmagórico. Dois temas: o amor sentimental e puro e o debate sobre a literatura. O simbolismo da dualidade dos lugares: primeira parte em São Paulo (sem ser nomeada) e a segunda parte na Itália (região também indefinida, senão como “raízes europeias”). Morte de Penseroso e reaproximação de Satan. Macário é frágil síntese entre o bem e o mal. Homem/Diabo, Fausto/Mefistófeles, Penseroso/Homem Angélico, Satan/Homem Diabólico, Macário/Homem Homem. O drama não acaba, pois se encaixa em A noite na taverna. Estruturalmente, um começa onde o outro supostamente termina: o ver a orgia pela janela. Que noite! Que vida! O estudante entrou na noite paulistana, passou pela Itália e acabou nesse espaço igualmente noturno, indeterminado, sangrento. A janela que termina o drama inicia a novela. Com a ressalva de tudo não tratar-se senão de um sonho. A análise implica o desdobramento do ser, segundo o qual, os ‘outros’ de Macário são Penseroso e Satan, sendo que este lhe propõe, em oposição ao exemplo do primeiro, uma espécie de educação pela noite: conotações de mistério e treva, discurso aproximativo ou dilacerado, potências recalcadas do inconsciente.

3
Macário é uma ilustração de uma visão da alma; A noite na Taverna, uma ilustração de certa visão de mundo. Ambos formam a representação do destino como fatalidade inexorável. As digressões sem limites e a frouxidão da estrutura de textos como Lábios de sangue (novela de episódios justapostos, como A noite na taverna?), O poema do frade, o poema Um cadáver de poeta revelam tendências de época, de assunto-puxar-assunto, assim como traços pessoais do artista.

4
O clássico tende ao resumo, porque mostra o essencial e com isto caminha para o abstrato. A inclinação romântica sugere a realidade por meio da multiplicação, não da subtração. Essa estética da multiplicação atenua o esforço de organizar a matéria, porque diminui o gosto pela seleção. Daí as estruturas vacilantes, com acúmulo de incidência e digressões, resultando uma composição em arabesco, extremamente caprichosa, na qual o fio da meada é torcido até se perder. Em Álvares de Azevedo há uma fuga permanente do assunto, uma espécie de adiamento compulsivo que retira muitos dos seus escritos do âmbito da ficção em prosa ou verso, para reduzi-los a vastas meditações. Acrescente-se a fuga do presente.  Ressalve-se, novamente, que o artista não teve tempo de dizer o que estava acabado, nem de organizar o que era para ser publicado.

A educação pela noite e outros ensaios, p.10-22, Antonio Candido, Ática, 2003.

Imagem: madeiralive.eu

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