Dona Lina, de batismo Lindalva de Souza
Pereira, é minha vizinha, pessoa muito querida, extremamente simpática,
atenciosa e que completou ontem 70 anos. Está “firme sobre os calcanhares”,
como ela mesma diz. Os olhinhos miúdos e espertos comprovam a informação e
ontem os amigos e parentes se reuniram para celebrar o aniversário dela.
Convidado, meio acanhado, sem ânimo,
assim mesmo eu fui.
Eu tinha em casa, herança de minha avó
paterna, um pequeno crucifixo de prata, pequeno, mas bonito e bem conservado.
Era uma cruz simples, mas trabalhada por mãos hábeis e também antigas. Bastou
que eu o esfregasse numa flanela e brilhou como se tivesse sido feito
anteontem. Impôs-se como peça de arte. Engenhosa. Comprar mesmo eu só comprei o
colarzinho, também de prata, e fininho por conta do dinheiro curto, e que tinha
o objetivo de acompanhar o pingente, evitando, assim, nos meus cálculos, a
explicação da história do presente de minha avó, essas coisas que podem demorar
e causar desconforto.
Pensei: vou mais cedo e, com uma desculpa
qualquer, posso voltar para o meu canto assim que os convidados começarem a
chegar. Assim foi. Assim fui. Quando bati e fui recebido por seu Edson, o velho
marido, pude perceber que estavam ainda na correria dos preparativos. Pensei de
novo: ótimo. Agradecendo a recepção de seu Edson, já adiantei minha necessidade
de não me demorar, muito trabalho, etc. Foi quando dona Lina me viu e veio.
Abraçamo-nos forte , segurei seu rosto entre as mãos e agradeci por estar ali,
por ter me convidado, essas coisas. Ela quis que eu entrasse, me sentasse,
tomasse um refrigerante... Eu tirei do bolso o velho crucifixo, que nem mesmo
havia embrulhado. Apenas abri a mão e disse que era pra ela, “uma lembrança”, e
eu vi a confusão tomar conta de seus olhinhos, que não sabiam se choravam ou
sorriam. Ou era eu quem não sabia. Ela apertou foi o presente na mão, depois
levou-o ao peito e depois o beijou, perguntando se poderia me contar uma
história antiga.
− Claro que sim, dona Lina – e nos
sentamos num banquinho de madeira. Seu Edson nos acompanhou e percebi que
muitos nos olhavam de longe.
− Meu filho, quando eu era muito pequena,
quase criança de colo, fui abandonada pelos meus pais, eu e meus outros três
irmãos. Meus pais se separaram por causa que ele bebia muito e minha mãe só
suportou aquilo até onde foi capaz. Éramos muito pobres, muito mais que hoje.
Cada um de nós foi para num canto. Meu pai era caseiro numa chácara e os
patrões dele ficaram com o mais velho, na verdade o único menino. Ficamos, as
três irmãs, com uma tia, imagina uma escadinha. Minha tinha não podia cuidar de
todas, já tinha um bebê pequeno em casa. Eu, a mais nova fui para a casa um
casal amigo da família, e que me batizaram e passaram ser os meus padrinhos. O
meu padrinho criava galinhas para vender. O meu irmão mais velho morreu,
conforme me contaram depois, por causa de uma briga. Ele era muito revoltado.
Nem tinha quinze anos, coitado, não viveu nada. Minhas duas irmãs moravam em
casas melhores, mas eu fiquei muito tempo com meus padrinhos num barracão
improvisado, numa área invadida, próximo do Ribeirão da Lapinha. Meus pais
retomaram a vida deles, juntos, e nos pediram desculpas. Eu fui a única que
perdoei eles. Eu gostava dos meus pais, não tinha raiva deles. Minhas irmãs,
mais velhas, não quiseram saber. Um dia desmancharam, à noite, o barracão, com
polícia e tudo, e fomos morar numa casa emprestada, que ficava perto daqui. Foi
nessa casa, eu tinha oito anos e já estudava e ajudava na arrumação de tudo.
Uma tarde de domingo, vi meu padrinho chegando, sorrindo e dizendo que tudo ia
ficar bem, que eu não me preocupasse. Passou pela portinhola de madeira, me
abraçou e me disse: “Olha, é pra você, para proteger você por toa a sua vida”.
Sabe o que era? Um crucifixo e um colarzinho iguais a esse que você acaba de me
dar, mas simples, conforme as condições dele. Durante quatro anos não me
apartei desse presente. Era só me sentir mais angustiada, e me agarrava com
ele, chorando baixinho. E sempre me sentia melhor, confiante. Até que a minha
prima, bem mais velha que eu, filha do irmão do meu padrinho, pediu para ver
meu crucifixo, que ela achava lindo. Tirou-o do colar e pegou, foi saindo com
ele e nunca mais me entregava. Reclamei com ela e com todos da casa até que ela
disse, olhe só, que uma das galinhas do padrinho havia comido o crucifixo.
Acreditei e passei muitos dias, não sei quantos, observando aquelas galinhas
todas, tentando adivinhar qual delas estava com minha lembrancinha. Com
nenhuma, é claro. Tá bom, já falei demais. Vem jantar. Mas olha, pra mim, eu
digo que você me devolveu meu crucifixo.
Ela terminou sua história antiga e eu fui
jantar, e logo fui embora. No caminho fui pensando que talvez tivesse sido
melhor ter dito logo de início que o pequeno pingente tinha sido de minha avó.
Imagem: Goiânia, longe (Foto: Gilson).