domingo, 21 de outubro de 2012

Crenças


“Saber ser supersticioso ainda é uma das artes que, realizadas a auge, marcam o homem superior” (Bernardo Soares/Fernando Pessoa).


“Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele – dizem só: o Que-Diga. Vote! não... Quem muito se evita, se convive. Sentença num Aristides – o que existe no buritizal primeiro desta minha mão direita, chamado a Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita – todo o mundo crê: ele não pode passar em três lugares, designados: porque então a gente escuta um chorinho, atrás, e uma vozinha que avisando: – ‘Eu já vou! Eu já vou!...’ – que é o capiroto, o que-diga... E um José Simpilício – quem qualquer daqui jura ele tem um capeta em casa, miúdo satanazim, preso obrigado a ajudar em toda ganância que executa; razão que o Simpilício se empresa em vias de completar de rico. Apre, por isso dizem também que a besta pra ele rupeia, nega de banda, não deixando, quando ele quer amontar... Superstição. José Simpilício e Aristides, mesmo estão se engordando, de assim não-ouvir ou ouvir. Ainda o senhor estude: agora mesmo, nestes dias de época, tem gente porfalando que o Diabo próprio parou, de passagem, no Andrequicé. Um Moço de fora, teria aparecido, e lá se louvou que, para aqui vir – normal, a cavalo, dum dia-e-meio – ele era capaz que só com uns vinte minutos bastava... porque costeava o Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, também, quem sabe – sem ofensas – não terá sido, por um exemplo, até mesmo o senhor quem se anunciou assim, quando passou por lá, por prazido divertimento engraçado? Há-de, não me dê crime, sei que não foi. E mal eu não quis. Só que uma pergunta, em hora, às vezes, clareia razão de paz. Mas, o senhor entenda: o tal moço, se há, quis mangar. Pois, hem, que, despontar o Rio pelas nascentes, será a mesma coisa que um se redobrar nos internos deste nosso Estado nosso, custante viagem de uns três meses... Então? Que-Diga? Doideira. A fantasiação. E, o respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço, é que é mesmo um querer invocar que ele forme forma, com as presenças!” (Riobaldo/Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas).

“O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? – o que faço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço, executado. Eu não tresmalho! Olhe: tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago, todo mês – encomenda de rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale. Minha mulher não vê mal nisso. E estou, já mandei recado para uma outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza também com grandes meremerências, vou efetuar com ela trato igual. Quero punhado dessas, me defendendo em Deus, reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo! Viver é muito perigoso...” (Riobaldo/Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas).
 





4 comentários:

  1. Obrigada por tornar meu domingo mais rico. Guimarães e Boldrin e seus causos me trouxeram sorrisos e reflexões. Postagem muito feliz! Abraços.

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  2. Gilson,
    Algumas vezes tenho dificuldade em entender os seus textos, mas o que sei sobre crenças, superstições, lendas, mitos, é que tudo isso faz parte da nossa história, aliás desde sempre o Homem tentou proteger-se e no fundo todos temos um pouquinho dessas coisas dentro de nós porque reconhecemos aspetos positivos de certas práticas.
    Abr./aluaP

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  3. Olá amigo, bom dia!
    Parabéns pela postagem! Só o fato de mencionares Guimarães Rosa já é de encantar! Tenhas uma ótima semana!
    Abraço.

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  4. Gilson! Admirável relacionamento o que consegue ligar um excelente texto a um extraordinário contador de histórias e trovador da canção sertaneja.
    Hoje não vou comentar os conceitos de "crença" "descrença e "superstição"
    mas eu atribuo-os ao mistério que sempre rodeou a origem do homem, da natureza, dos fenómenos naturais e ao medo. Este último distorce a capacidade que o homem tem de intelectualmente conceptualizar o que o rodeia, propiciando irrealidades que moldam a crença, a descrença e alimentam a superstição.
    Boa semana e parabéns pelo resultado conseguido.

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