quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Segisberto Jéia e Riobaldo

Aproximando-me dia após dia da prosa de Guimarães Rosa (peço desculpas pela rima não maliciosa, bom... Deixa pra lá), mais me dou conta de entrar em contato com dois aspectos dos quais, creio, não poderei escapar. Um deles é a musicalidade, seja pela presença viva de cantadores, cantigas, canções, ladainhas, seja pelo andamento poético do texto narrativo. Benedito Nunes, em ensaio pioneiro sobre o "Cara-de-Bronze", inicialmente parte de Corpo de Baile e depois publicado no volume No Urubuquaquá, no Pinhén, informa que o primeiro nome desse conto era "Poesia". O poeta Pedro Xisto, também muito cedo percebeu essa presença. O próprio Guimarães Rosa o confirma, em correspondência com seu tradutor para o italiano, o Professor Edoardo Bizarri: "o Grivo foi ao Maranhão buscar... Poesia", para o velho Cara-de-Bronze. O velho Segisberto, meticulosamente, escolheu o vaqueiro Grivo para a missão. O outro aspecto é a religiosidade, seja pela presença ostensiva de rezadeiras, pastores, padres, intensos debates acerca da existência ou não do Diabo, seja pela modulação quase mística do enquadramento dos casos. Esses dois aspectos, em conjunto, chegam a reduzir a história narrada, limitando fatos e eventos, desacelerando o desenrolar das narrativa. Fazendo-as parecer "burro no arenoso". Isso quando não há propriamente suspensão do contar, quando o narrador se desenvereda do curso regular que seguia e se esparrama em longas digressões, analepses e prolepses num quase emaranhado de impressões que assumem alta relevância. Em "Cara-de-Bronze", o velho, no interior da casa grande da fazenda, quase paralisado exteriormente, tem o espírito estalando, mas não quer saberde história, quer ficção, poesia, canto, invenção. Seu corpo cansado precisava livrar da paralisia da alma, o que mais o perturbava, por isso escolheu o Grivo para ir ao Maranhão e, na viagem, juntar o máximo de impressões que pudesse. Na verdade, quanto mais o Grivo mentisse ao voltar, tanto melhor. Em Grande Sertão: veredas, Riobaldo tem sua vida praticamente toda traçada nas palavras e nos sons da Canção de Siruiz, "o Senhor se alembra?" No meio de sua conversa interminável, também ele, no meio da travessia leterária, interrompe a narrativa de mais de 600 páginas, para um inacreditável parágrafo de quatro páginas, e no centro está a canção de Siruiz. Se parte das paredes dos labirintos desses dois personagens são feitas de música de reza, estamos próximos do que Gabriela Reinaldo chama de "Cantiga de fechar os olhos", referindo-se a GS:V. Como se sabe, o primeiro livro de Rosa foi composto de poesias. Livro negado, este conjunto de poemas ganhou, sob pseudônimo, o primeiro prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras de 1936, para nunca mais voltar à forma própria, ou clássica, do poema. Sua poesia se espalhou na prosa. Seu magma assumiu novas formas. No discurso de recebimento do prêmio em 1937, na Academia, lembrou que o "poeta não cita: canta" e que recebia o prêmio como "um menino que depõe seu brinquedo na superfície translúcida de uma água, para a qual a serenidade não é a estagnação, e cujo briljo nada rouba à projeção da profundidade". O Magma vinha da profundidade, mas como forma ficou aí. Só foi publicado 30 anos após a morte do autor. Das mesmas profundezas, porém, temos todo o que veio depois, e com Riobaldo, já sabemos que "para muitas coisas no mundo faltam nomes", mas o mundo é muito "cantável".

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