quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Uma luta

“É nisto que penso quando digo que gostaria de recuperar o curso do tempo: gostaria de anular as conseqüências de certos acontecimentos e restaurar uma condição inicial. Mas todo momento de minha vida traz consigo um acúmulo de fatos novos, e estes, por sua vez, acarretam conseqüências, e assim, quanto mais busco retornar ao ponto zero do qual parti, mais me distancio dele; embora todos os meus atos tendam a anular as conseqüências de atos anteriores, e conquanto eu tenha obtido resultados apreciáveis nessa tarefa, a ponto de animar-me com a esperança de um alívio próximo, devo considerar que cada uma desssas tentativas provoca uma chuva de novos acontecimentos que complicam ainda mais a situação original e que,  posteriormente, terei de fazer desaparecer”. ITALO CALVINO.

“Reperdida a remembrança, a representação de tudo se desordena: é uma ponte, ponte, – mas que, a certa hora, se acabou, parece`que. Luta-se com a memória” JOÃO GUIMARÃES ROSA.

Em Gabriela Reinaldo, Cantiga de fechar os olhos: mito e música em Guimarães Rosa, FAPESP/Annablume, 2005, p.59.


Cruz e Sousa

VISÃO

Noiva de Satanás, Arte maldita,
Mago Fruto letal e proibido,
Sonâmbula do Além, do Indefinido,
Das profundas paixões, Dor infinita.

Astro sombrio, luz amarga e aflita,
Das ilusões tantálico gemido,
Virgem da Noite, do luar dorido,
Com toda a tua Dor oh! sê bendita!

Seja bendito esse clarão eterno
De sol, de sangue, de veneno e inferno,
De guerra e amor e ocasos de saudade.

Sejam benditas, imortalizadas
As almas castamente amortalhadas
Na tua estranha e branca Majestade!

CRUZ E SOUSA

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Agora que passou

Agora que passou... Passou?



Vai passar
Nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais

Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
Seus filhos
Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal
Tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia
Que se chamava carnaval
O carnaval, o carnaval
(Vai passar)
Palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
E os pigmeus do bulevar
Meu Deus, vem olhar
Vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade
Até o dia clarear

Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral
Vai passar

CHICO BUARQUE / FRANCIS HIME

A mediania de cada um

 Seu Zezinho

Coisa das mais difíceis é medir as grandezas do ser humano. Quase sempre o fazemos pelo negativo, como se a bondade, a educação, a elegância fossem traços naturais. Não são. Já se disse que a opressão é o preço da civilização. E da sobrevivência da espécie, talvez. Esta última, ainda assim, muito discutível em suas linhas mais gerais. Na vida prosaica do dia comum nosso de sempre, alguns seres podem nos ajudar a ver ângulos novos. Conheço vários dessa estirpe e vou falar de um deles aqui: o senhor José Ferreira, Seu Zezinho, mecânico de automóveis, como gosta de ser conhecido.

Um metro e sessenta, no máximo, eis o tamanho do homem. Barbas e cabelos totalmente brancos, esses dois elementos de sua composição física nunca merecendo atenção alguma. Avô e aposentado. Já passou bem pelos setenta. Mecânico de Automóveis por puro gosto, Seu Zezinho possui oficina colada na casa em que vive com a esposa, uma das filhas e um dos netos. Trabalha quase sempre sozinho: não tem mais paciência com quem acha que sabe e nem para ensinar a quem não sabe. Seus conhecimentos do ofício são de impressionar. Se o seu carro estiver com algum barulho estranho, ele vai saber disso antes que você diga; até mesmo antes que o carro entre na oficina, ele já ouviu e sabe sobre o que você vai reclamar. Às vezes fala de um barulho na roda traseira direita que você mesmo não tinha percebido. Não aceita qualquer carro na oficina nem trabalha todo dia: apenas atende amigos ou pessoas indicadas por amigos; muitas vezes acorda sem vontade de trabalhar, toma café, avisa D. Joana que vai não sei onde, monta na moto estradeira, desaparece e só volta junto com a noite.

Há pessoas e pessoas, todos sabem, e Seu Zezinho é uma delas. Ignorância é poço sem fundo, todos sabem, e Seu Zezinho é uma das provas disso. São inúmeros os exemplos. O velho mecânico desenvolveu, ao longo de 50 anos consertando veículos, um ódio mortal a determinados tipos de carro, que ele chama, desculpem, de “essas desgraças”. Pois então, sempre que vou até sua oficina, lá está pelo menos uma dessas... Um desses carros excomungados. Não vou mencionar os nomes das “porcarias” por causa da elegância de que ainda sou capaz de manifestar às vezes. E por medo de represálias, também. Vamos tentar ser justos. Um dia, vendo-o debaixo de um deles e xingando sem parar palavrões terríveis, não resisti e perguntei:

– Mas, Seu Zezinho, desculpa, mas se o senhor sabe que esses carros não prestam, por que o senhor os pega para consertar?

A resposta é quase impublicável, mas gira em torno de algo como: “São esses filhos da puta desses meus amigos. Eu já falei mil vezes pra não comprar essas desgraças e eles me aparecem aqui com essas pragas...” E por aí vai. Nesse ponto abre um sorriso e diz que, na verdade, outro motivo é que um homem precisa xingar alguns palavrões todos os dias, “faz bem pra saúde”. E, finalmente, que aqueles carros malditos só aceitam ser consertados debaixo de muito xingamento. “Se não xingar, não funciona”. Às vezes é desconcertante ficar perto dele no trabalho. No começo me causava certo constrangimento. Depois me acostumei, passei a acender um cigarro começar a rir comigo mesmo, ali num canto. Ele lá, um palavrão emendando no outro. “Aí, tá vendo?” – Dizia ele, de repente.  “Está regulado esse ***, não sei como permitem que se fabrique uma *** dessa”.

Outra. Seu Zezinho odeia aparelho de telefonia celular. Possui um desses, exatamente o mesmo, há uns 15 anos, nunca achando razão suficiente para trocar. Agora, basta o aparelhinho cheio de graxa tocar, lá vem todo o repertório de palavrões outra vez. Já o vi atender ao chamado e continuar xingando que aquela merda filha da puta não o deixa trabalhar. Penso que as pessoas já sabem dos contextos todos e transmitem suas mensagens sem maiores problemas. Um dia, pensei em questioná-lo sobre as razões de ter o aparelho, se o incomodava tanto... Vislumbrando a resposta, me calei.

Agora, quer tirar o Seu Zezinho do sério, de verdade? Quer chamá-lo para resolver tudo na faca? É muito simples: ao sair diga “Seu Zezinho, fica com Deus”. Há os amigos mais próximos, que conhecem variantes: “Zé, você precisa ir pra igreja, rezar um pouco”. Ou então: “Zé, você sabe se tem uma igreja aqui perto?” Essas palavras são chaves para abrir um repertório inacreditável de impropérios e destemperos, blasfêmias e todo tipo de desacato, num ritmo que chega a travar a fala do velho. Começa mesmo a gaguejar de puro ódio. Não disse antes, mas na juventude, quando ainda era funcionário do Ministério da Saúde, Seu Zezinho fez dois cursos de graduação, um em Filosofia e outro, em Teologia. Eis a desgraça, desculpem, no seu último grau. Ele sabe bem quem é Deus.

O mecânico sabe muito bem quem é, o que é, onde está Deus e com quem anda, suas preocupações e tudo o mais. O que Seu Zezinho não suporta, mas nem que se fale nos nomes, são padres, pastores e igrejas. Ou o nome de Deus “na boca de todo mundo, de qualquer jeito”. Para ele, fontes de mentiras e ignorância, vejam só. Padres, pastores e igrejas são comerciantes e seu estabelecimento comercial, respectivamente, segundo ele. Quanto a Deus, ele não reconhece em ninguém a autoridade para usar o nome, nem que seja para verbalizar a ideia do desejo de boas coisas para ele mesmo, José Ferreira. Quem sabe de Deus é ele, Seu Zezinho, mecânico de automóveis. Mas Seu Zezinho tem lado. Outro dia levei o carro para uma consulta e ele mal abriu a tampa para ver o motor: passamos quase duas horas falando de Ética em Aristóteles e Kant, Deus no meio, sem nenhuma pedra no meio das palavras. Muitas dúvidas, isso sim, e convites para prosseguir de onde paramos: “Nicômaco”, pai e filho de Aristóteles, quer dizer “lar”. Eu ainda não disse isto a ele, mas seu Zezinho é muito mais kantiano do que imagina.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Medo de errar

"(...) Digo ao senhor: naquele dia eu tardava, no meio de sozinha travessia.

Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado. Se eu fosse filho de mais ação, e menos ideia, isso sim, tinha escapulido, calado, no estar da noite, varava dez léguas, madrugada, me escondia do largo do sol, varava mais dez, passava o São Felipe, as serras, as Vinte-e-Uma-Lagoas, encostava no São Francisco bem de frente da Januária, passava, chegava em terra cidadã, estava no pique. Ou me pegassem no caminho, bebelos ou Hermógenes, me matassem? Morria com um bé de carneiro ou um áu de cão; mas tinha sido um mais destino e uma mór coragem. Não valia? Não fiz. Quem sabe nem pensei sério em Diadorim, ou, pensei algum, foi em vezo de desculpa. Desculpa para o meu preceito, mesmo. Quanto pior, mais baixo se caiu, maismente um carece próprio de se respeitar. De mim, toda mentira aceito. O senhor não é igual? Nós todos. Mas eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão de fugir.

As razões de não ser. O que foi que eu pensei? Nas terríveis dificuldades; certamente, meiamente. Como ia poder me distanciar dali, daquele ermo jaibão, em enormes voltas e caminhadas, aventurando, aventurando? Acho que eu não tinha conciso medo dos perigos: o que eu descosturava era medo de errar – de ir cair na boca dos perigos por minha culpa. Hoje, sei: medo meditado – foi isto. Medo de errar. Sempre tive. Medo de errar é que é a minha paciência. Mal. O senhor fia? Pudesse tirar de si esse medo-de-errar, a gente estava salva. O senhor tece? Entenda meu figurado. Conforme lhe conto: será que eu mesmo já estava pegado do costume conjunto de ajagunçado? Será, sei. Gostar ou não gostar, isso é coisa diferente. O sinal é outro. Um ainda não é um: quando ainda faz parte com todos. Eu nem sabia. Assim que o Paspe tinha agulhas grandes, fio e sovela: consertou minhas alpercatas. Lindorífico me cedeu, por troco de espórtula, um bentinho com virtudes fortes, dito de sãossalavá e cruz-com-sangue. E o Elisiano caprichava de cortar e descascar um ramo reto de goiabeira, ele que assava a carne mais gostosa, as beiras tostadas, a gordura chiando cheio. E o Fonfrêdo cantava loas de não se entender, o Duvino de tudo armava risada e graça, o Delfim tocando a viola, Leocádio dansava um valsar, com o Diodôlfo; e Geraldo Pedro e o Ventarol que queriam ficar espichados, dormindo o tempo todo, o Ventarol roncasse – ele possuía uma rede de casamento, de bom algodão, com chuva de rendas rendadas... Aí e o Jenolim e o Acrísio, o João Vaqueiro, que depunham por mim com uma estima diferente, só porque se tinha viajado juntos, vindo do das-Velhas: – ‘Viva, companheiro...’ – saudavam. Ao que se jogava o truque, e douradinha e douradão, por cima de couros de rês. Aí a troça em beirada de fogueiras, o vuvo de falinhas e falas, no encorpar da noite. Artes que havia uma alegria. Alegria, é o justo. Com os casos, que todos iam contando, de combates e tiroteios, perigos tantos vencidos, escapulas milagrosas, altas coragens... Aquilo, era uma gente. Ali eu estava no entremeio deles, esse negócio. Não carecia de calcular o avante de minha vida, a qual era aquela. Saísse dali, tudo virava obrigação minha trançada estrita, de cor para a morte. Homem foi feito para o sozinho? Foi. Mas eu não sabia. Saísse de lá, eu não tinha contrafim. Com tantos, com eles, gente vivendo sorte, se cumpria o grosso de uma regra, por termo havia de vir um ganho; como não havia de ter desfecho geral? Por que era que todos ficavam ali, por paz e por guerra, e não se desmanchava o bando, não queriam ir embora? Reflita o senhor nisso, que foi o que depois entendi vasto".

JOÃO GUIMARÃES ROSA, Grande sertão: veredas.   

Os meninos II

Os meninos I

Antropologia do sertão III