terça-feira, 9 de agosto de 2011

Machadinho em boa hora

Razão contra Sandice

Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:  

La maison est à moi, c’est à vous d’en sortir. 

Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora, se advertirmos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez, outras durante a suas estações calmosas, concluiremos que essa amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso caso, houve quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a adventícia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sótão.

   ̶ Não, Senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.

   ̶ Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério...

    ̶ Que mistério?

    ̶ De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.

A Razão pôs-se a rir.

     ̶ Hás de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa...

E, dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando...

 (ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 3 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, p. 84 -5.)

Folhetim VI

6

O Minotauro era o mundo inventado. A partir desse momento não via outro jeito que não fosse refazer todo o meu raciocínio. E comecei logo. Já sabia que aquele lugar era uma invenção daquele velho. Poderia chamá-lo também de mentira, ficção, sonho, ou ainda outros nomes, mas não era isso que importava. O fato era que o mundo criado pelas palavras daquele velho, com aquela sua história interminável, sem tempo, havia sido aceito por mim, que o reconheci como uma objetividade. Algo que existia. Nesse momento olhei para a roseira e ela era. Eu não estava sonhando: eu e aquela roseira, pelo menos, éramos reais. Pensei naquele momento que havia encontrado a primeira chave: eu deveria incorporar o sonho como uma das dimensões da realidade. A imaginação daquele velho mentiroso estava me convencendo disso.

Ali, com a certeza que se pode ter, a dona da casa não era a razão. Pelo menos como sonha a nossa vã filosofia. A imaginação morava ali e não era louca. Mentiras... Ora, mentiras... Depois, seguindo no caminho – pensei ou senti – eu deveria atravessar todo aquele emaranhado de palavras para, também eu, ser capaz de realizar o trabalho de mentir, inventar, refazer o percurso da história, e, para isso, eu só tinha as palavras daquele que a contava. Então, novo susto. Desconfiei e vi a possibilidade de que aquele senhor que aparentemente tinha inventado aquela casa do tamanho do mundo, também ele poderia muito bem ser parte da invenção.

Por quê? Por causa do moço à sua frente, tomando aquelas algumas muitas notas. Aquele velho não existia: também era inventado e foi criado pelo moço calado que fingia anotar o conto do outro.

domingo, 7 de agosto de 2011

A Sobrevivência da arte

SAILING TO BYZANTIUM

That is no country for old men. The young
In one another's arms, birds in the trees —
Those dying generations — at their song,
The salmon-falls, the mackerel-crowded seas,
Fish, flesh, or fowl, commend all summer long
Whatever is begotten, born, and dies.
Caught in that sensual music all neglect
Monuments of unageing intellect.

An aged man is but a paltry thing,
A tattered coat upon a stick, unless
Soul clap its hands and sing, and louder sing
For every tatter in its mortal dress,
Nor is there singing school but studying
Monuments of its own magnificence;
And therefore I have sailed the seas and come
To the holy city of Byzantium.

O sages standing in God's holy fire
As in the gold mosaic of a wall,
Come from the holy fire, perne in a gyre,
And be the singing-masters of my soul.
Consume my heart away; sick with desire
And fastened to a dying animal
It knows not what it is; and gather me
Into the artifice of eternity.

Once out of nature I shall never take
My bodily form from any natural thing,
But such a form as Grecian goldsmiths make
Of hammered gold and gold enamelling
To keep a drowsy Emperor awake;
Or set upon a golden bough to sing
To lords and ladies of Byzantium
Of what is past, or passing, or to come.


W. B. YEATS, 1927.

Revisão III


“É com justiça que Christian Grataloup e Jacques Levy (1977, p.43) fazem o processo de uma geografia ‘para a qual o espaço, assim como o tempo, não é um dado objetivo, não tem existência real, mas se encontra em nossa maneira de perceber as coisas’”.

“Desde sua criação como disciplina aspirante a um status científico e durante a primeira metade do século XX, reconhece-se essencialmente duas tendências da geografia. De um lado, certos autores lutavam para assegurar à geografia uma categoria científica, um lugar na classificação das ciências e procuravam nela descobrir leis e princípios gerais, definir seu campo de trabalho, classificar os fatos de seu domínio e estabelecer uma hierarquia de valores. De outro lado, havia aqueles que, sob diferentes maneiras, procuravam fazer da geografia um corpo de conhecimentos imediatamente utilizável sem se importar quais poderiam ser as demandas dos utilizadores efetivos ou potenciais. À primeira orientação corresponde uma abordagem especulativa,  enquanto que a segunda leva a  todo tipo de pragmatismo. Se nos Estados Unidos é incomparável  o trabalho de um Hartshorne, de um Sauer ou de um Schaeffer, e de outros que estão acima da medida comum, pode-se, no entanto, sugerir que a primeira orientação era sobretudo européia. Este fato explicaria também a tendência dos geógrafos europeus a considerar o espaço como uma unidade, mesmo se raramente eles conseguiram transcrever suas intenções na teoria e no método. A geografia americana, alimentada de pragmatismo, tomando como objeto de estudo pedaços isolados  ou aspectos singulares da realidade ao gosto do cliente, acabou por pulverizar o objeto da disciplina e a própria disciplina. A proliferação dos temas a estudar a distanciava cada vez mais da construção de uma sínteses e, à medida que a geografia tornava-se mais utilitária, tornava-se também menos explicativa”.

“Resumindo, um pouco em toda parte, os geógrafos silenciam sobre o espaço. Algumas vezes silenciam também sobre o trabalho inovador de outros geógrafos e de outros espaciólogos” .

“A geografia é viúva do espaço (Santos, 1976). Sua base de ensino e de pesquisa é a história dos historiadores, a natureza ‘natural’ e a economia neoclássica, todas as três tendo substituído o espaço real, o das sociedades em seu devir,  por qualquer coisa de estático ou simplesmente de não existente, de ideológico”. Milton Santos em Por uma geografia nova, São Paulo, EdUSP, 2008.

Folhetim V

5

Numa manhã, sentei-me no degrau da varanda, num ponto que me possibilitasse ouvir a conversa do velho com seu amigo. Percebi logo duas coisas que me causaram estranhamento: primeiro, vi que estava do lado da roseira, para junto da qual fui parar sem atinar nisso; segundo, a “conversa” não se tratava exatamente de um diálogo, porque era só o velho que falava. O outro tomava algumas muitas notas. Numa espécie de epifania, descobri que aquele lugar estava perfeitamente descrito pelas palavras do velho, como se fossem elas o seu criador. Tudo ali, a casa, seus moradores, móveis, armas, tudo estava nas palavras do velho.

Como se fosse um deus, ele dizia e as coisas eram tal qual ele dizia. Ele falava e eu conferia: era. No mínimo, parecia muito. Assustei-me: eu não tinha mais dúvidas sobre o lugar onde estava: tratava-se de um labirinto. Tinha à minha volta cerca de 1500 caminhos possíveis, que tinha ouvido daqueles que também estavam estudando a casa. Um desses caminhos me levaria à saída, mas, como é clássico em situações como essa, esquecia-me de mim. Não me lembrava sequer de meu nome, às vezes. Na verdade, como se diz, nesses casos desaparecem todos os nomes e o tempo é submetido ao espaço. Eis o espaço do labirinto, e era onde eu me encontrava. Só pensava na saída. A saída.

Lembrei-me de Teseu e de Ariadne e concluí que o meu fio era tecido pelas palavras daquele velho. Elas me tirariam dali pela revelação do lugar onde estava.

Missa das onze e meia

Primeira leitura do 19º Domingo do Tempo Comum: "Naqueles dias, ao chegar a Horeb (...) o profeta Elias entrou numa gruta, onde passou a noite. E eis qua palavra do Senhor lhe foi dirigida nestes termos: 'Sai e permanece sobre o monte diante do Senhor, porque o Senhor vai passar'. Antes do Senhor, porém, veio um vento impetuoso e forte, que dsfazia as montanhas e quebrava os rochedos. Mas o Senhor não estava no vento. Depois do vento, houve um terremoto. Mas o Senhor não estava no terremoto. Passado o terremoto, veio um fogo. Mas o Senhor não estava no fogo. E depois do fogo, ouviu-se um murmúrio de uma leve brisa. Ouvindo isso, Elias cobriu o rosto com o manto, saiu e pôs-se à entrada da gruta". Reis I (19,9a.11-13a).

Deus estava era no silêncio, ou seja, em Elias mesmo.

arte e técnica

O vídeo é antigo mas me diz muito. Recebi de uma amiga: no distance, no matter... Stand by me.


Stand By Me | Playing For Change | Song Around The World from Concord Music Group on Vimeo.