quarta-feira, 20 de abril de 2011

Mariana Pineda IV - A Segunda estampa

Mariana Pineda
(romance popular em três estampas)
Federico Garcia Lorca, 1925

SEGUNDA ESTAMPA

"Sala principal na casa de Mariana. Tons cinzas, brancos e marfins, como numa antiga litografia, Grupo branco, estilo império. Ao fundo uma porta com cortina cinza, e porta laterais. Há um console com urna e grandes ramos de flores de seda. No centro da peça, um piano e um candelabro de cristal. É noite. Estão no palco La Clavela e os Filhos de Mariana. Vestem a deliciosa moda infantil da época. Clavela está sentada, e ladeando-a, em tamboretes, as crianças. A estância é limpa e modesta, embora conservando certos móveis de luxo herdados por Mariana".

Cena 1
Clavela conta histórias de ciganos para as crianças. As histórias contadas por Clavela se misturam à história de Mariana. Enquadramento ou encaixamento ou mise en abîme?

Cena 2
Mariana pede aos filhos que vão dormir, que Clavela os acompanhe e que rezem Salve-Rainhas e Credos. Sua filha diz que rezará a prece de São João e uma que pede por caminhantes e marinheiros. Mariana manda Clavela descer assim que os filhos dormirem.

Cena 3
Prece de Mariana à porta do quarto dos filhos: "Durmam sossegadamente, meus filhos, enquanto aqui, perdida e louca, sinto queimar-se em seu próprio lume vivo esta rosa de sangue de meu peito. A sonhar com o querosene e o jardim de Cartagena, luminoso e fresco, com o 'pássaro pinta' que se agita por entre as ramas do limoeiro verde! Que estou também adormecida, filhos, e vou revoando por meu próprio sonho como vão, sem saber aonde vão as perguntas mais tênues pelo vento".

Cena 4
Dona Angústias a movimentação naquela "velha e honrada casa" e avisa a Mariana que Dom Pedro está à porta. Ao sair correndo para recebê-lo, Dona Angústias pede calma e a alerta de que não se trata de receber um marido. Mariana diz que lhe dá razão mas não consegue se controlar.

Cena 5
"Mariana chega correndo à porta no momento em que Dom Pedro entre por ela. Dom Pedro tem trinta e seis anos. É um homem simpático, sereno e forte. Veste corretamente e fala de modo doce. Mariana lhe estende os braços e aperta-lhe as mãos. Dona Angústias adota um atitude reservada e triste. Pausa". Cena de muita rensão e angústia. Amor e liberdade dominam a conversa de Mariana e Dom Pedro, que agradece a Mariana e a Fernando o fato de poder estar ali a salvo e em sua companhia. Estão prontos pra lutar e morrerian pela liberdade. Chove e Mariana, num instante, pede silêncio.

Cena 6
Clavela avisa que batem à porta. . Aguardam os outros conspiradores. Mariana pergunta a Pedro se ele sabe quem virá e ele diz que sim. Bons companheiros, poucos, patriotas, pontuais e gente decidida.

Cena 7
Entram três outros conspiradores. Parece que fazem um análise de conjuntura e traçam planos para os próximos passos. A visão de todos é otimista quanto à adesão do povo à causa dos liberais. Mariana, porém, questiona, considerando o medo reinante na cidade, e pede a Pedro que vele por ela, que está prestes a sufocar. Ele não responde. Aguardam  uma  notícia de um quarto conspirador que está para chegar.

Cena 8
"Aparece pela porta o Conspirador 4º. É um homem forte: camponês rico.Veste o traje popular da época: sombreiro pontiagudo com abas largas de veludo, adornado com borlas de seda; jaqueta com bordados e aplicações de pano de todas as cores nos cotovelos, no canhão e no pescoço. A calça, presa por botões de filigrana, e as perneiras de couro, abertas de um lado, deixando ver a perna. Trai uma doce tristeza varonil. Todos os personagens estão de pé junto à porta da entrada. Mariana não esconde a angústia, e olha, ora o recém-chegado e ora Dom Pedro, com ar aflito e perscrutador". O Conspirador 4º traz más notícias: o levante terá que ser adiado porque não há disposição do povo em enfrentar o Governo e todos os conspiradores estão sendo caçados pela polícia. Será preciso esperar mais e guardar bem a bandeira, que a hora chegará. Mariana informa que mandou a bandeira para a casa de uma velha amiga, mas se mostra arrependida, achando que teria sido melhor deixá-la em sua própria casa. O Conspirador 4º continua a apresentar notícias ruins: muitas mortes de liberais em Málaga. Traições. Contudo, todos permanecem firmes no propósito de seguir lutando. Mariana faz promessa a Pedro: "Enquanto eu viver". Como não há mais o que decidir, resolvem beber, quando Clavela aparece para informar que Pedrosa está à porta de sua casa, acompanhado de dois homens. Na confusão que se instala, Mariana manda Pedro fugir e ele concorda imediatamente ("confuso"). O Conspirador 4º argumenta que "é indigno deixá-la" a sós com Pedrosa. Mariana insiste com Pedro: "Vai deoressa". O Conspirador 2º rebate: "Nós não devemos deixá-la abandonada". Pedro ("enérgico"): "É necessário! Como justificar nossa presença?" Todos saem, orientados por Clavela. Maria corre para o piano e começa a cantar uma canção.

Cena 9
"As cortinas do fundo se levantam e aparece Clavela, aterrorizada, com o candelabro de três velas numa das mãos, e a outra posta sobre o peito. Pedrosa é um tipo seco, de uma palidez intensa e de uma admirável serenidade. Dirá as frases com ironia muito velada, e olhará minuciosamente para todos os lados, mas com correção. É antipático. Há que fugir da caricatura. Ao entrar Pedrosa, Mariana deixa de tocar e se ergue do piano. Silêncio". Diálogo de agudíssima tensão entre Mariana e Pedrosa. Ambos sabem mais um sobre o outro que suas palavras revelam. A sequência me soou como uma luta de esgrima, inclusive por seu aspecto erótico (quando da procura pelo anél que caiu, Pedrosa chega a abraçar e beijar Mariana). Logo no início esta indicação cênica: "(Pausa. Nesta cena haverá pausas imperceptíveis e rotundos silêncios instantâneos, nos quais lutam desesperamente as almas dos personagens. Cena delicadíssima de se matizar, procurando não cair em exageros que prejudiquem a emoção. Nesta cena há que se notar muito mais o que não se diz do que o que está se falando. A chuva, discretamente imitada e sem ruído excessivo, chegará de quando em quando enchendo silêncios").  Ao final da cena o tom fica bastante pesado, com Mariana chamando Pedrosa de canalha, que a quer por a perder. Pedrosa diz que, ao contrário, quer salvá-la. e espera um chamado dela. Declara que sabe da bandeira e dos outros implicados na conspiração, mas que pode resolver tudo isso se Mariana ficar com ele: "Eu te quero minha, estás compreendendo? Minha ou morta". Ficam as dissimulações, as ameaças, as "ofertas" de amizade Pedrosa. Maria diz não temer nada, confessa ter bordado a bandeira, e o expulsa de casa, chamando-o covarde. Pedrosa prende Mariana. Mariana ainda tenta fugir mas se descobre realmente presa. "Agora começo a morrer". Dona Angústias avisa que a filha de Mariana chora, com medo da chuva e do vento.

Pano rápido

Imagem: Google images (pt.photaki.com)

Mariana Pineda III - A Primeira estampa

Antiga mesquita em Granada
Mariana Pineda
(romance popular em três estampas)
Federico Garcia Lorca, 1925

PRIMEIRA ESTAMPA

"Casa de Mariana. Paredes brancas. Ao fundo, balcõezinhos pintados de escuro. Sobre uma mesa, uma fruteira de cristal, cheia de marmelos. Todo o teto estará cheio desta fruta, pendurada. Em cima da cômoda, grandes ramos de rosas de seda, Tarde de outono. Ao levantar-se o pano, Dona Angústias, mão adotiva de Mariana, sentada, lendo. Está vestida de escuro. Tem um ar frio, mas é maternal ao mesmo tempo. Isabel la Clavela veste com bizarrice. Tem trinta e sete anos".

Cena 1
Diálogo de Dona Angústias com Clavela. Notícias de Mariana a bordar uma bandeira republicana, dos liberais. Borda com uma linha vermelha: "uma ferida de punhal sobre o ar". Falam de sua exposição por amor a Pedro, um conspirador. Parece que chegam amigas de Mariana, filhas do Ouvidor, Luzia e Amparo.

Cena 2
Conversa amistosa e alegre entre as amigas de Mariana, Dona Angústias e nem tanto com Isabel la Clavela.

Cena 3
"A porta se abre e aparece Mariana, vestida de lilás, com penteado de bucles, pente e uma grande rosa atrás da orelha. Não tem mais que um anel de brilhantes na mão esquerda. Aparece preocupada, e dá mostras, à medida que avança o diálogo, de vivíssima inguietude. Ao entrar Mariana no palco, as duas jovens correm ao encontro dela".
Conversa sem importância com as meninas. É revelado que Mariana tem 2 filhos pequenos. Dona Angústias sai para cuidar deles.

Cena 4
Perguntadas por Mariana. As irmãs falam do amor de seu irmão, Fernando, por Ela. Fernando teria dito que via nos olhos de Mariana "um constante desfile de pássaros". A conversa segue amena, em que pese a indicação cênica informar da inquietude de Mariana, que constantemente observa a porta e se distrai. Amparo faz bela exposição de uma tourada a que assistiu em Ronda. O tempo todo pensou em Mariana com ela, vendo a tourada. Mariana se emociona. As meninas saem.

Cena 5
"Mariana atravessa rapidamente o palco e olha as horas num desses grandes relógios dourados, onde sonha toda a poesia requintada da hora e do século. Vai até as vidraças e vê a última luz da tarde". Se as tardes fossem pássaros Mariana quereria lançar-lhes para lhes "fechar as asas". Está angustiada. Sobre aquela noite, canta: "Noite temida e sonhada;/que me feres já de longe/com longuíssimas espadas". Num susto, percebe Fernando, que chega. Parecia esperar outra(s) pessoa(s). Fernando tem 18 anos e está apaixonado por Mariana. Faz elogio à casa de Mariana: cheiro de marmelo, fachada com pinturas de barcos e grinaldas. Mariana o interrompe questionando sobre o movimento das ruas. Fernando responde que sim, mas Mariana insiste, querendo detalhes, e Fernando informa sobre ums grupos de homens envoltos em capas e comentavam a fuga de um certo capitão liberal que fugiu do cárcere., mas Fernando tem certeza de que Pedrosa o encontrará e o matará. Aumenta a angústia de Mariana e a luz vai deixando o palco. Pedrosa é caracterizado por Mariana e Fernando como uma desgraça, aterrorizador, velho atrevido, criminoso e dissimulado. Mariana diz que ela a tem visitado. Pedrosa estáa serviço do rei, para prender liberais em Granada e espreita a casa de Mariana. A casa já está na penumbra e Maria pede que Clavela proviencie luzes. Batem fortemente à porta.

Cena 6
Um homem num cavalo deixa uma carta e foge. Maria toma a carta avidamente, como se a esperasse ansiosamente. O seu estado de espírito não passa desapercebido de Fernando, que oferece ajuda, que não é aceita. Mariana alega problemas de família que ela mesma tem que resolver. Sai Fernando. Na carta, Pedro Sotomayor pede a Mariana algo que ela não pode fazer sozinha. Muita desesperada, chama de volta Fernando. 

Cena 7
Mariana, muito angustiada e constrangida, pergunta se pode confiar um favor a Fernando. Ela entende que é pedir demais mas ele diz que qualquer coisa faria por ela, mesmo algo perigoso. Mariana diz que o chamou porque tem medo de morrer sozinha naquela casa porque sua vida está lá fora. Mariana vislumbra Pedrosa a vigiá-la e entrega a carta a Fernando, porque já duvida poder continuar vivendo. A carta: "Adorada Marianita: Graças à roupa de capuchinho, que habilmente fizeste chegar a meu poder, fugi da torre de Santa Catarina, confundido com outros frades, que acabavam de assistir a um réu de morte. Esta noite, disfarçado de contrabandista, tenho absoluta necessidade de sair para Válor e Candiar, onde espero ter notícias dos amigos. Necessito antes das nove o passaporte que tens em teu poder e uma pessoa, de tua absoluta confiança, que espere com um cavalo, mais acima da represa do genil, para, rio adiante, me internar na serra. Pedrosa fechará o cerco como ele sabe, e se esta noite não parto, ficarei irremediavelmente perdido. Estou na casa do velho Dom Luiz, e que não o saiba ninguém de sua família. Não tentes me ver, pois me consta que está vigiada. Adeus, Mariana. Seja tudo por nossa divina mãe, a liberdade. Deus me salvará. Adeus, Mariana. Um abraço e a alma deste que te ama - Pedro Sotomayor". Cena pungente em que Fernando declara abertamente seu amor por Mariana e se vê na obrigação de ajudar seu adversário. Mariana decide ir ela mesma. Fernando não permite e diz que fará o trabalho. Mariana o entrega o documento e indica o lacal onde está o cavalo. Mariana pede cuidado prudência, que evite guarda ou soldado. Fernando não teme nada por ter o coração cativo. Pede enfim que Mariana não saia de casa.

Cena 8
Mal sai Fernando e Dona Angústias volta ao palco e, com ela, o doce perfume de marmelos. Dona Angústias informa sobre uma brancadeira dos filhos de Mariana: eles descobriram a bandeira escondida que bordava e, deitando-se sobre ela, figiam-se de mortos. Dona Angústias reclama da falta de homem naquela casa, mas pede que esqueça Dom Pedro. Maria diz que não pode. Dona Angústias pede ainda que Mariana pense em seus filhos. Mariana reconhece sua neglugência para com os filhos.

Imagem: Google images: plato.if.usp.br

terça-feira, 19 de abril de 2011

Mariana Pineda II - Prólogo


Mariana Pineda
(romance popular em três estampas)
Federico Garcia Lorca, 1925

Prólogo

Cenário representando o desaparecido arco árabe das Cucharas e perspectiva da praça Bibarrambla em Granada, enquadrando em margem amarelada, como velha estampa, iluminada de azul, verde, amarelo, rosa e celeste, sobre um fundo de paredes negras. Uma das casas estará pintada com motivos marinhos e guirlandas de frutas. Luar. Ao fundo, as meninas cantarão com acompanhamento o romance popular:

Oh, que dia tão triste em Granada
que até às pedras fazia chorar
ao ver a Marianita morrendo
num cadafalso, por não delatar!

Marianita sentada em seu quarto
Não parava de considerar:
"Se Pedrosa me visse bordando
a bandeira da Liberdade, ah!"

(Mais longe)
Oh, que dia triste em Granda,
nos seus sinos dobrar dobrar!

(De uma das janelas assoma uma MULHER com um candeeiro aceso. Cessa o coro)

MULHER
Meninas! Me ouves?

MENINA (De longe)
Já vou!

(Sob o arco aparece uma MENINA vestida segundo a moda do ano de 1850, que canta)

Como lírio cortaram o lírio,
como rosa cortaram a flor,
como lírio cortaram o lírio,
Mais formosa no de alma ficou.

(Lentamente, entra em casa. Ao fundo, o coro continua)

Oh, que dia triste em Granada
Que até às pedras fazia chorar!

Pano Lento

[Moldura noturna: Luar, enquadramento em margem amaleda, fundo de paredes negras. Encaixamento: esta cena incial é de vinte anos depois do sacrifício de Mariana, cuja história é já romance popular. O canto das meninas antecipa o fim de Mariana, que ao final morre encantada pelo delírio de permanecer viva, morrendo pela Liberdade e pelo Amor: "mais formosa no de alma ficou"]

Mariana Pineda I - Personagens


Mariana Pineda
(Romance popular em três estampas)
Federico Garcia Lorca, 1925

Personagens: Mariana Pineda, Dom Pedro Sotomayor, Fernando, Pedrosa, Isabel La Clavela, Dona Angústias, Jovens Monjas, Amparo, Luzia, Menino, Alegrito, Menina, Soror Carmen, Noviça 1ª, Noviça 2ª, Monja, Conspirador 1º, Cospirador 2º, Conspirador 3º, Conspirador 4º, Mulher do Candeeiro

A Estrutura da narrativa II - Bremond


Análise estrutural da narrativa
R. Barthes e outros
Editora Vozes, 1972

A lógica dos possíveis narrativos (p.110-135)
Claude Bremond

Dos setores: a) análise das técnicas e b) leis do universo narrado. Mas b pode: 1) respeitar constrições lógicas sob pena de ininteligibilidade e 2) respeitar as convenções de seu universo particular (cultura, época, gênero...). Para as transformações: primeiro) unidade de base é a função (aplicada às ações); segundo) a sequência elementar. Três funções agrupadas dão na sequência elementar, correspondentes a três fases de todo processo: a) uma função para abrir a possibilidade do processo; b) a ação e c) resultado; terceiro) nenhuma dessas funções necessita a que a segue na sequência. O narrador é livre para fazê-las passar à ação ou mantê-las na virtualidade. Ele pode atuaLizar a conduta sempre que desejar, mesmo estiver entre suas opções o resultado final da narrativa; quarto) as sequências elementares se combinam nas sequências complexas: a) encadeamento sucessivo (funções distintas num mesmo papel: malfeito a cometer>feito retribuído; b) o enclave (inclui no processo um outro: malfeito cometido=feito a retribuir>feito retribuído>dano infligido); c) o emparelhamento (duas sequências sob duas perpectivas: dano a infligir vs malfeito a cometer>dano infligido vs malfeito cometido = feito a retribuir). O Ciclo narrativo: "toda narrativa consiste em um discurso integrando uma sucessoão de acontecimentos de interesse humano na unidade de uma mesma ação". Categorias: processos de degradação (o erro; a obrigação; o sacrifício; a agressão sofrida; o castigo) e de melhoramento (realização da tarefa; intervenção do aliado; eliminação do adversário; negociação; retribuições (recompensa e vingança)): a) por junções sucessivas; b) por enclave e c) por emparelhamento. "Cada agente é seu próprio herói. Seus parceiros se qualificam na sua perspectiva como aliados, adversários, etc. Estas qualificações se invertem quando se passa de perspectiva para outra. Longe, pois, de construir a estrutura da narrativa em função de um ponto de vista privilegiado o do 'herói' ou do narrador - os modelos que elaboramos integram na unidade de um mesmo esquema a pluralidade das perspectivas próprias dos diversos agentes". (...) "Este enquadramento dos tipos narrativos é ao mesmo tempo um estruturação das condutas humanas agentes e pacientes. Elas fornecem ao narrador o modelo e a matéria de um devir organizado que lhe é indispensável e que seria incapaz de encontrar em outro lugar. Desejada ou temida, seu fim comanda um encadeamento de ações que se sucedem, se hierarquizam, se dicotomizam segundo uma ordem intangível. Quando o homem, na experiência real, combina um plano, explora na imaginação dos desenvolvimentos possíveis de uma situação, reflete sobre a marcha da ação empreendida, rememora as fases do acontecimento passado, ele narra para si mesmo as primeiras narrativas que poderíamos conceber. Inversamente, o narrador que quer ordenar a sucessão cronológica dos acontecimentos que relata, dar-lhes uma significação, não tem outro recurso a não ser ligá-los na unidade de uma conduta orientada em direção a um fim".

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O Sortilégio da mariposa IV - Segundo Ato


O Sortilégio da Mariposa
(Comédia em dois atos e um prólogo)

Federico García Lorca (1919)

Segundo Ato

Cena I
O Discurso do amor impossível

Final do dia; fim do do tempo dado pela Nigromântica para a meditação de Baratinho. A cena I aparece como um comentário. Duas Baratas, uma santa e outra, menos, conversam sobre a triste situação de Baratinho, que está diante da morte que decorre do amor diferente. Não importa que fosse a paixão de Baratinho por uma estrela, uma flor, uma borboleta; trata-se de uma impossibilidade: da tensão entre a paixão e a morte, entre Eros e Tanatos. Uma critica sua tendência à loucura de viver no fio da aranha, quase ou já mesmo loucura. A outra, a Santa, com comedimento, pede que se sinta o sofrimento do outro, que não se julgue. Trata-se de uma cena preparatória.

Cena II
Os Malditos poetas

Após os cuidados em casa de Dona Barata, a Mariposa é levada ao regato, ainda dormente, onde resta vigiada por Baratas Guardiãs, especialmente contra o perigo que representa Lacrauzito. A Barata Nigromântica pede calma à mãe e pede urgência em que Baratinho se case com Sílvia. Dona Barata tem maus pressentimentos e lança maldição sobre todos os poetas, declarando que, podendo, os queimaria todos. Nigromântica sentencia que o esquecimento os queimará.

Cena III
O Canto da Mariposa ao despertar

"Mariposa (Despertando): 'Voarei pelo fio de prata./Os meus filhos me esperam/lá nos campos distantes,/fiando em suas rocas./Eu sou o espírito/da seda./Venho de uma arca misteriosa/e vou para a névoa./Que cante a aranha/em sua cova;/que o rouxinol medite/minha lenda;/que a gota de chuva se assombre/ao resvalar-me sobre as asas mortas./Fiei meu coração sobre carne/para rezar nas trevas,/e deu-me a morte duas asas brancas,/mas a fonte cegou de minha seda./Compreendo agora o lamentar da água,/o lamentar das estrelas,/e o lamentar do vento na montanha,/e o zumbido pungente/da abelha./Porque sou a morte/e a beleza./O que sobre o prado diz a neve,/a fogueira o repete;/as canções do fumo na manhã/dizem-nas as raízes sob a terra./Voarei pelo fio de prata;/os meus filhos me esperam./Que cante a aranha/em sua cova;/que o rouxinoi medite/minha lenda;/que a gota de chuva se assombre/ao resvalar-me sobre as asas mortas'. (A Mariposa move as asas com lentidão)".

Cena IV
A Volta de Lacrauzito, sóbrio

Lacrauzito reaparece, não está bêbado mas é ameaçador como sempre. Muito inteligente, malicioso e provocador também. A Barata Guardiã o rechaça e ele vai até o limite, ou seja, muito bem perto da Mariposa, que não esboça nenhum temor, nenhuma reação. Por fim, com medo das outras Guardiãs, Lacrauzito se retira. Ainda aí provocador, chama a Guardiã de feia, louca e solterona.

Cena V
A Mariposa, as gotas de orvalho e os vagalumes

Três Vagalumes, procurando gotas de orvalho para se alimentar, encontram a Mariposa. "Mariposa: 'Escutei/como as claras gotas/falavam docemente/contando-se mistérios/de campos infinitos'. 3º Vagalume (Voltando-se bruscamente): 'Nunca falam as gotas;/nascem para alimento/de abelhas, vagalumes/o espírito não têm'. Mariposa: 'O grão de areia fala,/e as folhas todas têm/um caminho distinto;/porém todas as vozes,/e os cantos que escutares,/são disfarces estranhos/de um só canto. Um fio/me levará aos bosques/onde se vê a vida.' 3º Vagalume: 'És acaso uma fada?'. Mariposa: 'Eu não sei o que fui;/tirei meu coração/e a alma lentamente;/e meu pobre corpo agora/está morto e vazio'. 1º Vagalume: 'Pois goza o amor/que já vem a manhã./Bebe com alegria/as gotas de rocio'. Mariposa: 'Não sei o que é amor,/jamais o saberei'."

Cena VI
Baratinho volta à cena

Baratinho reaparece na presença da Mariposa, "pintado" de açucena, ou seja, vestido "graciosamente" de amarelo. "Baratinho (Declamatoriamente): 'As folhas e as flores/se murcharam./Eu mantinha o silêncio/da manhã. (...) Era o tempo ditoso de meus versos tranquilos,/mas uma fada à minha porta/chegou vestida de neve transparente/para tirar-me a alma./Que farei nestes prados sem amor e sem beijos?/Atirar-me-ei às águas?/Porém penso no mundo com que minha mãe sonha,/um mundo de alegria mais além dessas ramas,/repleto de rouxinóis e de prados imensos:/o mundo do rocio/onde o amor não se acaba./E se São Baratão não existisse? Que motivo/teria minha amargura fatal? Sobre as ramas/por nós outras não vale aquele que nos fizera/superiores a todo o criado?'" Uma Baratinha Camponesa o lastima, considerando-o definitivamente louco.

Cena VII
O Desespero

Baratinho se desespera, se declara e faz promessas, sem compreender o que se passa. A comunicação entre ele e a Mariposa é teatral ou inconsciente. Ele fala (canta); ela não responde mas dança. Ele questiona o silêncio e ela tenta voar. Ele ainda fala e a Mariposa cai no chão. Baratinho a abraça e, inconsciente, esta se deixa abraçar, mas em seguida se separa bruscamente e dança ao som das palavras de Baratinho: "Quem me pôs estes olhos que não quero/e estas mãos que tratam/de prender um amor que não entendo? E me põe fim à vida!/Quem me perde entre sombras? Quem me manda sofrer sem asas ter?"

O Sortilégio da mariposa III - Primeiro ato


O Sortilégio da Mariposa
(Comédia em dois atos e um prólogo)

Federico García Lorca (1919)

Primeiro Ato

Cena I
A Conversa entre Dona Barata e a Barata Nigromântica

É uma manhã rubra em um prado verde e humilde. Toda a primeira indicação cênica segue as orientações já indicadas no Prólogo: humildade, pequenez, invisibilidade, ingenuidade... Todo o lugar se apresenta "como um minúsculo e fantástico povoado de buracos". Impossível não pensar num universo em miniatura, aliás bastante coerente com as personagens em cena: representações de insetos. Dona Barata sai de sua "casa" para a limpeza do quintal e encontra a Barata Nigromântica, que, com grande abatimento de alma, revela um sonho que teve na noite anterior: era "uma flor na relva afundada". Disse ainda que na tarde anterior, recebera de uma andorinha a informação de que "todas as estrelas irão se apagar". Disseram-lhe ainda as cigarras que uma fada havia morrido. Questionada por Dona Barata, a Nigromântica respondeu que quem matou teria matada foi o amor. Rompe-se essa assunto para introduzir outro: o filho de Dona Barata, que ambas acham triste nos últimos dias. Dona Barata revela que ele está enamorado. Despedem-se se criticando: a outra, a vida prática de uma; uma, a poesia da outra. A Nigromântica se vai, deixando a Dona Barata varrendo e cantando misteriosos versos em redondilhas.

Cena II
A Conversa de Dona Barata com a Baratinha Sílvia
Entre em cena a Baratinha Sílvia, apaixonada pelo filho de Dona Barata e reclamando sua sorte, por saber não tocar o coração do amado. Sílvia está deprimida e vendo-se zombada por Dona Barata revela-lhe o objeto de seu amor. Dona Barata muda de tom e promete que fará seu filho a amar. Não por mais nada que não seja a riqueza da família de Sílvia. A cena termina com Dona Barata indo chamar seu filho e Sílvia, renovada, querendo ser rainha daqueles prados, pois que tem amor e riqueza.

Cena III
A Apresentação de Baratinho
"Baratinho, o Nenen, é um rapaz gentil e elegange, cuja originalidade consiste em pintar as pontas de suas antenas e a para direita com pólen de açucena. É poeta e visionário que, instruído pela Barata Nigromântica, de que é discípulo, espera um grande mistério que há de decidir sua vida... Traz em uma de suas patas - mãos - um pedacinho de cortiça de árvore onde estava escrevendo um poema... Dona Barata vem a seu lado, exaltando a fortuna de Sílvia. Esta se dedica a galantear com a margarida de um lado para o outro, e, colocando uma patinha na cara, suspira, arrebatada. O sol já está quimando"
O rapaz insiste com mãe sobre a decisão de que não se casará. Informa ainda que não gosta de Sílvia e só se casaria por amor. Dona Barata insiste na riqueza de Sílvia, relativiza o amor e vai para dentro de casa, cozinhar, deixando os dois em cena.

Cena IV
A Conversa de Baratinho com a Baratinha Sílvia

Baratinho, sentado perto de Sílvia, lê um trecho de poema, e é elogiado por ela. Sílvia que busca o amor, sem cessar.  Baratinho defende que o amor é bem difícil de encontrar. Baratinho informa que está apaixonado por uma estrela que se parece com uma flor e que mora na sua imaginação. Baratinho diz com todas as letras que não quer Sílvia, em que pese ter sido carinhoso com ela um dia. Sílvia quer chorar e Baratinho a consola, bem junto junto, quando duas outras Baratinhas passam por eles, brincando e os chamando de noivos. Baratinho acha triste a situação. 

Cena V
Lacrauzito, o Corta-Vime, a parece: grande desconforto

"Lacrauzito é um velho lenhador que vive no bosque e que frequentemente desce ao povoado para embriagar-se. É glutão insaciável e pessoa má. Fala com voz aguardentosa".
Lacrauzito está completamente bêbado e é extremamente incoveniente e ameaçador. Parece sentir prazer em ameaçar e causar medo. Ao final da cena, após muito aporrinhar, está caído de bêbado. Então surge como que uma procissão de Baratas Camponesas, que carregam nos braços uma Mariposa ferida em uma das asas. Teria sofrido uma queda. Com elas vêm a Barata Nigromântica, que compara a Mariposa a uma estrela caída e agradece a honra de poder tratá-la. Dona Barata traz ervas e Baratinho está visivelmente comovido. Sílvia informa à mãe, Dona Orgulhos, que Baratinho não a quer. Dona Orgulhos se declara sem meios de agir e desdenha da aparência de Baratinho, "tão pintado e tão medonho". A Mariposa suspira e diz que quer voar e, misteriosamente, "o fio é extenso". "O fio vai à estrela/onde está meu tesouro;/minhas asas são de prata,/meu coração é de ouro;/o fio sonhando está/com seu vibrar de bezouro...". Lacrauzito é a morte. Baratinho é o amor. O que é a Mariposa? O fio? A cena termina com as Baratas Camponesas conduzindo a Mariposa para dentro da casa de Dona Barata.

Cena VI
A Certeza de Baratinho e a sentença de Nigromântica
Baratinho confessa à papoula que já viu sua estrela misteriosa. Lacrauzito: morte, morte, morte... A certeza: "meu coração se queixa/dum amor que já sente". A sentença: "Baratinho, teu viver/depende das asas dessa grande mariposa./Não a fites com ânsia porque te podes perder,/quem o diz é tua amiga, já velha e achacosa./ Este círculo mágico o diz bem claramente./Se dela te enamoras, ai de ti, morrerás./Cairá na tua pobre fronte a noite ingente./A noite sem estrelas, onde te perderás./Medita até a tarde". A Barata Nigromântica faz com um palito um círculo no chão. Baratinho parece estar diante da vida e da morte e do fio que as liga. Baratinho chora. Cumprida sua missão, Lacrauzito, aos tombos, vai-se embora, cantando. "A centa está cheia de luz".

quinta-feira, 14 de abril de 2011

O Sortilégio da mariposa II - O Prólogo


O Sortilégio da Mariposa
(Comédia em dois atos e um prólogo)

Federico García Lorca (1919)

PRÓLOGO

"Senhores: A comédia que ides ouvir é humilde e inquietante, comédia rasgada do que quer arranhar a lua e arranha seu coração. O amor, o mesmo que passa com sua burlas e seus fracassos pela vida do homem, passa nesta ocasião por uma escondida pradaria povoada de insetos onde havia muito tempo era a vida aprazível e serena. Os insetos estavam contentes, só se preocupavam com beber tranquilos as gotas de orvalho e educar seus filhinhos no santo temor de seus deuses. Amavam-se por costume e sem preocupações. O amor passava de pais a filhos como joia velha e esquisita que o primeiro inseto recebera das mãos de Deus. Com a mesma tranquilidade e a certeza de que o pólen das flores se entrega ao vento, gozavam o amor sob a relva úmida. Mas um dia... houve um inseto que quis ir mais além do amor. Enamorou-se de uma visão que estava muito longe de sua vida... Talvez leu com muita dificuldade algum livro de versos que deixou abandonado sobre o musgo um poeta dos poucos que vão ao campo, e se envenenou com aquilo de 'eu te amo, impossível mulher'. Por isso, suplico a todos que não deixeis nunca livros de versos nas pradarias, porque podeis causar muita desolação entre os insetos. A poesia que pergunta por que correm as estrelas é muito daninha para as almas em botão... É inútil dizer-vos que o enamorado bichinho morreu. E é que a morte se disfarça de Amor! Quantas vezes o enorme esqueleto portador da foice, que vemos pintado nos devocionários, toma a forma de uma mulher para enganar-nos e abrir-nos as portas de sua sombra! Parece que o menino Cupido dorme muitas vezes nos buracos vazios de sua caveira. Em quantas antigas estorietas, uma flor, um beijo ou um olhar fazem o terrível ofício de punhal! Um velho silfo do bosque, escapado de um livro do grande Shakespeare, que anda pelos prados sustentando com umas muletas suas asas murchas, contou ao poeta esta estória oculta num anoitecer de outono, quando os rebanhos se foram, e agora o poeta vo-la repete envolta em sua própria melancolia. Mas antes de começar quero fazer-vos o mesmo pedido que a ele fez o velho silfo naquele anoitecer de outono, quando os rebanhos se foram. Por que nos causam repugnância aqueles insetos limpos e brilhantes que se movem graciosamente entre as ervas?  E por que a vós, homens, cheios de pecados e de vícios incuráveis, inspiram-vos asco os bons dos vermes que passeiam tranquilamente pela pradaria tomando o sol da manhã morna? Que motivos tendes para desprezar o que há de ínfimo na Natureza? Enquanto não amardes profundamente a pedra e o verme não entrareis no reino de Deus. O velho silfo disse também ao poeta: 'Muito em breve chegará o reino dos animais e das plantas; o homem se esquece do seu Criador, e o animal e a planta estão bem perto de sua luz; dize, poeta, aos homens que o amor nasce com a mesma intensidade em todos os planos da vida; que o mesmo ritmo que tem a folha embalada pelo vento tem a estrela longíqua, e que as mesmas palavras que diz a fonte na úmbria, repete-as no mesmo tom o mar; dize ao homem que seja humilde, tudo é igual na Natureza'. E nada mais disse o velho silfo. Agora, escutai a comédia. Talvez riais ao ouvir esses insetos falarem como homenzinhos, como adolescentes. E se alguma lição dela tirardes, ide ao bosque para dar graças ao velho silfo das muletas, num anoitecer tranquilo quando se tenham ido embora os rebanhos".