domingo, 19 de fevereiro de 2012

Minas Gerais II

 “Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
– e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras:
olhos colados nos vidros,
mulheres e homens à espreita,
caras disformes de insônia,
vigiando as ações alheias.
Pelas gretas das janelas,
pelas frestas das esteiras,
agudas setas atiram
a inveja e a maledicência.
Palavras conjecturadas
oscilam no ar de surpresas,
como peludas aranhas
na gosma das teias densas,
rápidas e envenenadas,
engenhosas, sorrateiras

Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
brilham fardas e casacas,
junto com batinas pretas.
E há finas mãos pensativas,
entre galões, sedas, rendas,
e há grossas mãos vigorosas,
de unhas fortes, duras veias,
e há mãos de púlpito e altares,
de Evangelhos, cruzes, bênçãos.
Uns são reinóis, uns, mazombos;
e pensam de mil maneiras;
mas citam Virgílio e Horácio,
e refletem, e argumentam,
falam de minas e impostos,
de lavras e de fazendas,
de ministros e rainhas
e das colônias inglesas.

Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
uns sugerem, outros recusam,
uns ouvem, uns aconselham.
Se a derrama for lançada,
há levante, com certeza.
Corre-se por essas ruas?
Corta-se alguma cabeça?
Do cimo de alguma escada,
profere-se alguma arenga?
Que bandeira se desdobra?
Com que figura ou legenda?
Coisas da Maçonaria,
do Paganismo ou da Igreja?
A Santíssima Trindade?
Um gênio a quebrar algemas?

Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
entre sigilo e espionagem,
acontece a Inconfidência.
E diz o Vigário ao Poeta:
‘Escreva-me aquela letra
Do versinho de Virgílio...’
E dá-lhe o papel e a pena.
E diz o Poeta ao Vigário,
com dramática prudência:
‘Tenha meu dedos cortados,
antes que tal verso escrevam...’
LIBERDADE AINDA QUE TARDE,
ouve-se em redor da mesa.
E a bandeira já está viva,
e sobe, na noite imensa.
E os seus tristes inventores
já são réus – pois se atreveram
a falar em Liberdade
(que ninguém sabe o que seja).

Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
– e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras.
‘Que estão fazendo, tão tarde?
Que escrevem, conversam, pensam?
Mostram Livros proibidos?
Leem notícias nas Gazetas?
Terão recebido cartas
De potências estrangeiras?’
(Antiguidades de Nîmes
Em Vila Rica suspensas!
Cavalo de La Fayette
saltando vastas fronteiras!
Ó vitórias, fests, flores
das lutas da Independência!
Liberdade – essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
E ninguém que não entenda!)
E a vizinhança não dorme:
murmura, imagina, inventa.
Não fica bandeira escrita,
mas fica escrita a sentença".

CECÍLIA MEIRELES, Romanceiro da Inconfidência, Romance XXIV ou Da Bandeira da Inconfidência.

2 comentários:

  1. Muito bonito este poema de Cecília Meireles.
    Apesar das portas grossas há sempre luz que passa.
    Obrigada pela luz que deixou na minha janela!
    Beijinho. :)

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    Respostas
    1. Ana,
      sou eu quem agradece a sua sempre honrosa visita a este humilde espaço.
      Abraço do tamanho de Minas Gerais e boa semana.
      Obrigado.
      Gilson.

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