segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Medo de errar

"(...) Digo ao senhor: naquele dia eu tardava, no meio de sozinha travessia.

Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado. Se eu fosse filho de mais ação, e menos ideia, isso sim, tinha escapulido, calado, no estar da noite, varava dez léguas, madrugada, me escondia do largo do sol, varava mais dez, passava o São Felipe, as serras, as Vinte-e-Uma-Lagoas, encostava no São Francisco bem de frente da Januária, passava, chegava em terra cidadã, estava no pique. Ou me pegassem no caminho, bebelos ou Hermógenes, me matassem? Morria com um bé de carneiro ou um áu de cão; mas tinha sido um mais destino e uma mór coragem. Não valia? Não fiz. Quem sabe nem pensei sério em Diadorim, ou, pensei algum, foi em vezo de desculpa. Desculpa para o meu preceito, mesmo. Quanto pior, mais baixo se caiu, maismente um carece próprio de se respeitar. De mim, toda mentira aceito. O senhor não é igual? Nós todos. Mas eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão de fugir.

As razões de não ser. O que foi que eu pensei? Nas terríveis dificuldades; certamente, meiamente. Como ia poder me distanciar dali, daquele ermo jaibão, em enormes voltas e caminhadas, aventurando, aventurando? Acho que eu não tinha conciso medo dos perigos: o que eu descosturava era medo de errar – de ir cair na boca dos perigos por minha culpa. Hoje, sei: medo meditado – foi isto. Medo de errar. Sempre tive. Medo de errar é que é a minha paciência. Mal. O senhor fia? Pudesse tirar de si esse medo-de-errar, a gente estava salva. O senhor tece? Entenda meu figurado. Conforme lhe conto: será que eu mesmo já estava pegado do costume conjunto de ajagunçado? Será, sei. Gostar ou não gostar, isso é coisa diferente. O sinal é outro. Um ainda não é um: quando ainda faz parte com todos. Eu nem sabia. Assim que o Paspe tinha agulhas grandes, fio e sovela: consertou minhas alpercatas. Lindorífico me cedeu, por troco de espórtula, um bentinho com virtudes fortes, dito de sãossalavá e cruz-com-sangue. E o Elisiano caprichava de cortar e descascar um ramo reto de goiabeira, ele que assava a carne mais gostosa, as beiras tostadas, a gordura chiando cheio. E o Fonfrêdo cantava loas de não se entender, o Duvino de tudo armava risada e graça, o Delfim tocando a viola, Leocádio dansava um valsar, com o Diodôlfo; e Geraldo Pedro e o Ventarol que queriam ficar espichados, dormindo o tempo todo, o Ventarol roncasse – ele possuía uma rede de casamento, de bom algodão, com chuva de rendas rendadas... Aí e o Jenolim e o Acrísio, o João Vaqueiro, que depunham por mim com uma estima diferente, só porque se tinha viajado juntos, vindo do das-Velhas: – ‘Viva, companheiro...’ – saudavam. Ao que se jogava o truque, e douradinha e douradão, por cima de couros de rês. Aí a troça em beirada de fogueiras, o vuvo de falinhas e falas, no encorpar da noite. Artes que havia uma alegria. Alegria, é o justo. Com os casos, que todos iam contando, de combates e tiroteios, perigos tantos vencidos, escapulas milagrosas, altas coragens... Aquilo, era uma gente. Ali eu estava no entremeio deles, esse negócio. Não carecia de calcular o avante de minha vida, a qual era aquela. Saísse dali, tudo virava obrigação minha trançada estrita, de cor para a morte. Homem foi feito para o sozinho? Foi. Mas eu não sabia. Saísse de lá, eu não tinha contrafim. Com tantos, com eles, gente vivendo sorte, se cumpria o grosso de uma regra, por termo havia de vir um ganho; como não havia de ter desfecho geral? Por que era que todos ficavam ali, por paz e por guerra, e não se desmanchava o bando, não queriam ir embora? Reflita o senhor nisso, que foi o que depois entendi vasto".

JOÃO GUIMARÃES ROSA, Grande sertão: veredas.   

2 comentários:

  1. racias por tu visita y tus comentarios en mi espacio. Un placer seguirte.Te envio un cordial saludo desenadote un lindo dia.Tu blog es muy interesante amigo.

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    1. Darwin Bruno,
      muy agradecido por tu visita. Este humilde espacio, que busca la simplicidad, se siente honrado. Muchas gracias. Perdoname la lengua, que no conozco bien e que me sale tropezada. Hay más piedras que palabras, creo.
      Saludos.
      Gilson.

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