A
ausência de ruído lá fora só aumenta, atormenta, o peso do silêncio cá dentro. E
o enorme desejo de ir embora, tão íntimo dele, tantas vezes sentido, desde
menino, não o deixa dormir. Eis uma fogueira cujo fogo só aumentava.
A
cidadezinha, muito pequenina, onde viveu parte da infância, certa vez recebeu
um circo. Algo muito estranho sentiu o menino quando viu, acompanhou, muito
atentamente, entre curioso e deslumbrado, a gente toda se movimentando para
armar aquela lona. Aquele imenso balão mágico. Ainda hoje, já velho, pode
descrever com detalhes o estranho homem, Leréia chamado, que, como se propagava,
seria, durante as apresentações, pregado na cruz como fizeram com Jesus Cristo,
e seria enterrado vivo por horas. Tudo assustador e encantador. Aquele Cristo
do circo era muito magro e mantinha uns cabelos ralos e compridos, e barba.
Sorria, cumprimentava a todos e convidava para o espetáculo. O palhaço Tonho,
só se descobriu depois, na apresentação, que era aquele moço gordo e triste, que
com rosto cansado e pensativo desmontava aquelas coisas todas de cima dos
caminhões e ajudava a montar as madeiras que serviriam de bancos para o
público. Dona Salina, uma italiana grandona, de voz rouquenha, olhos muito
azuis, olheiras... Seo Matteo, marido de Dona Salina, o único que estava sempre
bem vestido e composto, cabelos com brilhantina e sempre muito bem penteados,
parecendo que protegidos da poeira da cidadezinha. Quase todos os meninos e
algumas meninas ficavam o dia todo vendo o circo aparecer. Suas brincadeiras
todas, biloca, pião, papagaio, pique-esconde foram todas transferidas para as
proximidades daquela agitação incomum. O menino estava lá quando ergueram o
mastro que levou a lona para o alto, com uma bandeirazinha vermelha triangular
muito lá em cima, e tão visível, sacudida pelo vento. Escolheram para a
instalação aquele espaço vazio bem em frente da única igreja do lugar.
Ele
foi a todas as apresentações, durante aquela semana em que circo esteve lá. Não
viu graça no Tonho, o palhaço, teve pena dos animais, tão magros... Descobriu
os truques do Leréia e foi apontá-los a ele, que saiu dando cambalhotas,
dizendo: “Certo, mas eu sei fazer muitas outras coisas”. Descobriu também que o
Tonho era o responsável pela cozinha. Era ele quem preparava a alimentação do
grupo, talvez composto por umas vinte pessoas.
No
sábado, horas antes da penúltima apresentação, o menino conheceu Michele, filha
de Dona Salina e Seo Matteo. Ele absolutamente não sabia o que falar quando estava
diante de menina tão dessemelhante. Deviam ter a mesma idade, algo próximo dos
nove anos, mas para ele pareceu que Michele tinha muito mais. Ela estava sempre
de bermudazinha vermelha e sem sapatos ou chinelos nos pés. Chamou-o para caminhar
no picadeiro: “É macio, o Tonho coloca palha de arroz”, disse. Corriam, pulavam,
caiam, sorriam. Na apresentação daquele sábado, Michele lhe explicou todo o
funcionamento do circo: as viagens, as pessoas fazendo muitas coisas e sendo
também artistas. Falou do rapaz da moto que girava no globo da morte, na moça
bonita trapezista, prima dela... Segundo Michele todos recebiam dinheiro de seu
pai, que era o dono, e que viajavam de cidade em cidade. O menino pensava em tudo
e em todos, enquanto a ouvia, mas pensava mais era no Tonho, que a ele parecia trabalhar mais que os outros e era obrigado a fazer as pessoas rirem, sendo triste, ele mesmo.
Michele
tinha os olhos da mãe. Não se sabe que forças lhe veio, mas lhe ocorreu dizer
que ela tinha o céu nos olhos. Ela era esquisita e mesmo lhe disse mais: que os
olhos de todos são infinitos, como o céu, nem importava a cor, que talvez nem
fosse azul.
No
domingo, depois da missa, o menino não acompanhou os pais no caminho de casa.
Estava com algumas ideias que não conseguia decifrar e um pressentimento. Das ideias
não cuidou, mas o pressentimento estava certo: ao dar a volta no prédio da
igreja, encontrou Michele sentada num pequeno, velho, sujo e baixo murozinho, na
sombra de uma goiabeira.
As
palavras dela o sacodem ainda agora, quando soa lá fora o silêncio da noite, e imagina
o céu infinito que a mesma noite tenta não deixar que se veja: “Hoje é a última
apresentação aqui, amanhã desmontamos tudo e vamos embora. Por que você não vem com a
gente?”.
(...)
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“És
senhor da palavra não dita.
Da palavra pronunciada tu te tornas escravo”.
Da palavra pronunciada tu te tornas escravo”.
PROVÉRBIO
ORIENTAL.
Texto e imagem: Gilson (exceto quando a fonte é referida).