― A notícia que
Pedro esperava com ansiedade tamanha, em sua vida livre na grande fazenda do
pai, chegou ao amanhecer: “Olhinhos pariu esta noite, são sete gatinhos,
precisa ver o tanto que são pequeninos. Venha”. Era a voz de Dontinha, que, a
esta altura sacudia Pedro na cama.
Talvez temendo
algum acontecimento ruim, Dontinha esperou que o pai de Pedro saísse para a
lida diária, para só depois chamar o menino. Pedro nunca teve preguiça de sair
da cama, mas naquele dia, ainda escurozinho, num salto o menino já estava no
canto da cozinha. Perto do grande fogão a lenha, junto dos panos que Dontinha
havia arrumado para Olhinhos ter seus filhotes, deslumbrou-se com o
tamanhozinho dos bichinhos, ainda de olhos fechados, sujeitos à lambeção da
mãe. Nos seus quase oito anos já havia visto a cria de todo tipo de animal
vivente na fazenda, mas era a primeira vez que via os de uma gata. Olhinhos era
de Dontinha, que ajudava a mãe de Pedro na arrumação da enorme casa e era
mulher de um meeiro de seu pai.
Passou toda a manhã
observando os movimentos naquele espaço da casa. Os filhotes começaram logo
cedo a emitir seus sons miados e eram muitos.
O sol estava a pino
quando o pai chegou. Tinha na cara um ar de assombro e, nas mãos um saco de
linhagem, desses de 60 quilos com que se carregam arroz e feijão para a
cooperativa. Num gesto brusco, recolheu panos e filhotes e jogou tudo no saco,
estendendo-o para o menino assustado.
― Pedro, pegue,
arrume um cavalo, vá até o rio e jogue isso lá. Jogue com força, o mais longe
que puder, dentro do rio.
Pedro fez o que o
pai mandou ― não ousava questioná-lo ― e rumou em direção do rio. Não podia,
porém, cumprir aquela ordem de jogar os animaizinhos na água. Não podia. Iria
mentir, fingir que jogasse, fazia de conta e pronto. Tinha só que arrumar lugar
para eles, e comida. A criação veio rapidamente: a Olhinhos tinha a comida
deles e deveria desaparecer também. Contou para o pai, à noite, que havia
jogado a gata e seus filhotes no rio, assim ficavam livres do problema para
sempre. Nunca se saberá o que o pai pensou daquilo.
Pedro, enquanto
esteve na fazenda, até o fim daquele ano, ia, todos os dias, furtivamente,
visitar Dontinha, que cuidava, cúmplice, de Olhinhos e de seus filhotes. Ele
pediu para dar nome a um deles e Dontinha gostou da ideia, apesar de informar
que já vinha chamando cada um por um nome.
― Não tem problema.
Essa aqui será a Sete Vidas Minhas.
Dontinha soltou uma
gargalhada linda:
― Moleque...
A memória da gente é porque não ajuda mais. As
ideias vão se remexendo dentro, umas se adiantando, outras se atrasando: tudo
mudando de lugar. O que me honra é esse seu querer me ouvir. Por isso vou
tentando contar. Naquele tempo ainda existia aqui na banda de baixo dessa mata,
umas quinze léguas, deve ser... Então, existia ainda a Fazenda do Seu João
Juvêncio. Fazendão de homem de riquezas, muito boi, muito pasto e muita roça
ainda tinha. O senhor vai lá hoje e não vê mais nada, coisa triste. Acabou.
Então. naquele tempo, que eu falava, nasceu ali
uma criança. Um menino. Conto mal: claro que nasceram lá muitas crianças. O que
eu quero dizer é que nasceu o menino que é o da estória que eu conto, e que você
espera que eu conte. Você sabe: nasciam ali eram apenas os filhos dos meeiros,
empregados e capangas do Seu João Juvêncio, porque os filhos dos homens ricos
nascem é em hospital de cidade. Sempre foi assim. Quando morrem, estes, também
é lá, nos hospitais das cidades. Pobres, não: os filhos desses nasciam onde
estavam; e morrem quando e onde Deus quisesse. Tudo isso estou dizendo para
nada, pois, se é, já é coisa que você, tão instruído, deve saber e muito mais
do que eu mesmo. Bobeio.
Esse menino que nasceu na Fazenda que existiu ali
era filho do Nêgo e da Dontinha. Nêgo era meeiro do Seu João Juvêncio, e também
existiu sempre na Fazenda. Ele e Dontinha, sua mulher, eram do tempo de Vô
Tonico, pois era desse que João Juvêncio tinha herdado as terras da Fazenda. Vô
Tonico era o pai da Sinhá Lina e sogro, então, na época, de João Juvêncio.
Nascido o menino, ele cresceu solto por esses campos todos. Você verá: esses espaços
não têm tamanho, mundo sem beirada a nenhuma. A gente procura e é só o que
existe. Os capões de mato, o capoeirão, o cerradinho, os campos limpos, as
roças e os roçados, os ribeirõezinhos, riachinhos, rios, rios. Cerca você verá,
mas naquele tempo também não tinha. Este menino, este que nasceu, que conto a
você, era quase igual a esse mato aí. Sempre se alegrava: com a chuva, que
lavava sua cara; com o sol, que o fazia ver mais cores em tudo que era coisa
que existia. Pedro se chamava. Um outro Pedro, de antes.
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Texto e imagem: Gilson.