quinta-feira, 28 de junho de 2012

Pajarito en la ventana


Um pássaro bem pequeno
Pousou na minha janela –
outro dia... De manhã.

Não tive a menor dúvida:
alguma mensagem trazia –
e, muito rápido, se foi.

Sem dizer nada, nada.
Fiquei com a imagem do olharzinho dele –
olhar e plumagem de mensageiro:
de quem vive no vento.

Esse pequeno súdito de Hermes –
vivente no reino do leva e traz,
por pouco nada me deixou.
Muito difícil sua língua, então,
hermético pardalzinho.

Depois, vi.

Cantaba cosas tan viejas como yo, el pajarito!
Lo mejor de mí, canta este pequeño pájaro.






domingo, 24 de junho de 2012

"Moço!: Deus é paciência"


"Tão bem, conforme. O senhor ouvia, eu lhe dizia: o ruim com o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar – Deus espera essa gastança. Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o diabo. Se gasteja. O senhor rela faca em faca – e afia – que se raspam. Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-se arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que eu penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e carece. Antesmente preciso. Deus não se comparece com refe, não arrocha o regulamento. Pra quê? Deixa: bobo com bobo – um dia, algum estala e aprende: esperta. Só que, às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta...

Haja? Pois, por um exemplo: faz tempo, fui, de trem, lá em Sete-Lagoas, para partes de consultar um médico, de nome me indicado. Fui vestido bem, e em carro de primeira, por via das dúvidas, não me sombrearem por jagunço antigo. Vai e acontece, que, perto mesmo de mim, defronte, tomou assento, voltando deste brabo Norte, um moço Jazevedão, delegado profissional.Vinha com um capanga dele, um secreta, e eu bem sabia os dois, de que tanto um era ruim, como o outro ruim era. A verdade que diga, primeiro tive o estrito de me desbancar para um longe dali, mudar de meu lugar. Juízo me disse, melhor ficasse. Pois, ficando, olhei. E – lhe falo: nunca vi cara de homem fornecida de bruteza e maldade mais, do que nesse. Como que era urco, trouxo de atarracado, reluzia um cru nos olhos pequenos, e armava um queixo de pedra, sobrancelhonas; não demedia nem testa. Não ria, não se riu nem uma vez; mas, falando ou calado, a gente via sempre dele algum dente, presa pontuda de guará. Arre, e bufava, um poucadinho. Só rosneava curto, baixo, as meias-palavras encrespadas. Vinha reolhando, historiando a papelada – uma a uma as folhas com retratos e com os pretos dos dedos de jagunços, ladrões de cavalos e criminosos de morte. Aquela aplicação de trabalho, numa coisa dessas, gerava a ira na gente. O secreta, xereta, todo perto, sentado junto, atendendo, caprichando de ser cão. Me fez um receio, mas só no bobo do corpo, não no interno das coragens. Uma hora, uma daquelas laudas caiu – e eu me abaixei depressa, sei lá mesmo por que, não quis, não pensei – até hoje crio vergonha disso – apanhei o papel do chão, e entreguei a ele. Daí, digo: eu tive mais raiva, porque fiz aquilo; mas aí já estava feito. O homem nem me olhou, nem disse nenhum agradecimento. Até as solas dos sapatos dele –só vendo – que solas duras grossas, dobradas de enormes, parecendo ferro bronze. Porque eu sabia: esse Jazevedão, quando prendia alguém, a primeira quieta coisa que procedia era que vinha entrando, sem ter que dizer, fingia umas pressas, e ia pisava em cima dos pés descalços dos coitados. E que nessas ocasiões dava gargalhadas, dava... Pois, osga! Entreguei a ele a folha de papel, e fui saindo de lá, por ter mão em mim de não destruir a tiros aquele sujeito. Carnes que muito pesavam... E ele umbigava um princípio de barriga barriguda, que me criou desejos... Com minha brandura, alegre que eu matava. Mas, as barbaridades que esse delegado fez e aconteceu, o senhor nem tem calo em coração para poder me escutar. Conseguiu de muito homem e mulher chorar sangue, por este simples universozinho nosso aqui. Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...

Tanto, digo: Jazevedão – um assim, devia de ter, precisava? Ah, precisa. Couro ruim é que chama ferrão de ponta. Haja que, depois – negócio particular dele – nesta vida ou na outra, cada Jazevedão, cumprido o que tinha, descamba em seu tempo de penar, também, até pagar o que deveu – compadre meu Quelemém está aí, para fiscalizar. O senhor sabe: o perigo que é viver... Mas só do modo, desses, por feio instrumento, foi que a jagunçada se findou. Senhor pensa que Antônio Dó ou Olivino Oliviano iam ficar bonzinhos por pura soletração de si, ou por rogo dos infelizes, ou por sempre ouvir sermão de padre? (...)”

Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.


Lições do Universo

Os versos da música ainda não são a minha realidade, de forma alguma, apesar de reconhecer sua verdade e sua beleza. Talvez até quisesse que assim fosse, mas não é. Gostaria ainda de dedicá-los a Angelines, de Lanuza, no Pirineus Espanhol, cujos espaços (o real e o virtual) me fizeram lembrar da canção.


Missa das onze e meia


Natividade de São João Batista
24 de junho de 2012

"(...) João declarou: 'Eu não sou aquele que pensais que eu seja! Mas vede: depois de mim vem aquele, do qual nem mereço desamarrar as sandálias'" (Atos 13, 25).

sábado, 23 de junho de 2012

Bem que se aprende


Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor – compadre meu Quelemém, diz. Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois – e Deus, junto. Vi muitas nuvens. 

Mas, em verdade, filho, também, abranda. Olhe: um chamado Aleixo, residente a légua do Passo do Pubo, no da- Areia, era o homem de maiores ruindades calmas que já se viu. Me agradou que perto da casa dele tinha um açudinho, entre as palmeiras, com traíras, pra-almas de enormes, desenormes, ao real, que receberam fama; o Aleixo dava de comer a elas, em horas justas, elas se acostumaram a se assim das locas, para papar, semelhavam ser peixes ensinados. Um dia, só por graça rústica, ele matou um velhinho que por lá passou, desvalido rogando esmola .O senhor não duvide – tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão. Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos; aqueles eram o amor dele, todo, despropósito. Dê bem, que não nem um ano estava passado, de se matar o velhinho pobre, e os meninos do Aleixo aí adoeceram. Andaço de sarampão, se disse, mas complicado; eles nunca saravam. Quando, então, sararam. Mas os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama desapiranga à rebelde; e susseguinte – o que não sei é se foram todos duma vez, ou um logo e logo outro e outro – eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de luz dessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha – três meninos e uma menina – todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não perdeu o juizo; mas mudou: ah, demudou completo – agora vive da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite e do dia. Parece até que ficou o feliz, que antes não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter pena dele, transformar para lá o rumo de sua alma. Isso eu ouvi, e me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?! Compadre meu Quelemém reprovou minhas incertezas. Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que acha? E o velhinho assassinado? – eu sei que o senhor vai discutir. Pois, também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, por pagar.”

Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.


São João

"Foi numa noite, igual a esta,
que tu me deste teu coração" (Luiz Gonzaga). 

Noite de S. João

Noite de S. João para além do muro do meu quintal.
Do lado de cá, eu sem noite de S. João.
Porque há S. João onde o festejam.
Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,
Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.
E um grito casual de quem não sabe que eu existo.

Alberto Caeiro.





Coisas tão sérias que, por um nada, se perdem. Comigo, não.






Mal bem aprendido


Se a gente – conforme compadre meu Quelemém é quem diz – se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do inimigo. Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtei – nome moderno, é o que o povo daqui agora apreceia, o senhor sabe. Pois essezinho, essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou criaçãozinha pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula benta-bêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três pontos a popa da perna dela. O que esse menino babeja vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco. – ‘Eu gosto de matar...’ – uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça – o voo já está pronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro – botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do sangue, com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossurada que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão – como regulam as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo bom. Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega para a quaresma que vem... Uê-uê, então?! Não sendo como compadre meu Quelemém quer, que explicação é que o senhor dava? Aquele menino tinha sido homem. Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorando e penando, ele sofre igual que se fosse um menino bonzinho... Ave, vi de tudo, neste mundo! Já vi até cavalo com soluço... – o que é a coisa mais custosa que há.”

Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.



quinta-feira, 21 de junho de 2012

Tristeza, saudade, memória...


Estive de passagem pela cidade de Valença, Bahia, há mais de um ano e é impressionante como, ainda hoje, a beleza do lugar, especialmente aquela das proximidades do Rio Una, está presente em minha memória. Ultimamente, além das atrações tradicionais que oferece, Valença é uma espécie de posto de apoio para quem está a caminho da ilha de Morro de São Paulo, o que movimenta ainda mais o porto e aumenta a circulação de embarcações no Rio Una. 

Hoje, dia de greve no trabalho, e nas horas que apareceram por conta disso, entre a construção do meu texto, as inúmeras dúvidas que se desdobram dia após dia, a saudade fez voltas em volta de mim e, por alguma razão que desconheço, me levou de volta a Valença-BA. E às suas águas todas.











 

Ubiquidade

Estás em tudo que penso,
Estás em quanto imagino;
Estás no horizonte imenso,
Estás no grão pequenino.

Estás na ovelha que pasce,
Estás no rio que corre:
Estás em tudo que nasce,
Estás em tudo que morre.

Em tudo, nem repousas,
Ó ser tão mesmo e diverso!
(Eras no início das cousas,
Serás no fim do universo.)

Estás na alma e nos sentidos.
Estás no espírito, estás
Na letra, e, os tempos cumpridos,
No céu, no céu estarás.

MANUEL BANDEIRA, Petrópolis-RJ, 11 de março de 1943.



terça-feira, 19 de junho de 2012

Escolha os versos


“Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro…”.
 
CLARICE LISPECTOR.



domingo, 17 de junho de 2012

Encontro dos povos


Para ajudar na divulgação do Encontro dos Povos.

Missa das onze e meia


11º Domingo do Tempo Comum
17 de junho de 2012

"(...) pois caminhamos na fé e não na visão clara" (2Cor 5, 7).


Nur die liebestraum




No fundo da alma
um sonho mora.
Demora,
ainda,
agora, ora.
(Toda manhã de domingo eu saio de casa para encontrá-la naquele mesmo banco
no braço esquerdo da cruz. Onde ela me deixou.) 



sábado, 16 de junho de 2012

Era uma voz... I


"De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil, peixe vivo no moquém: quem mói no asp'ro não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei nesse gosto de especular ideia. O diabo existe e não existe. Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...  

"Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum, nenhum! - é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco - é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso - por estúrdio que me vejam - é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela - já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum."

Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.

 

Tempo, tempo II

"Roda,
roda, moinho; roda, pião..."

O mundo parou num instante, (...)




A profundidade II


“A explicação que Bergson propõe para o fenômeno da hipermnésia repousa por completo na ideia de que ele é determinado, não por uma adição, um crescimento, ou o aparecimento de algum elemento novo e positivo, mas ao contrário, pela diminuição, até mesmo pelo desaparecimento ou a ausência do que está habitualmente presente e ativo no espírito. É essa deficiência e essa ausência, esse acontecimento totalmente negativo, que faz jorrar no espírito o que há de mais positivo: a lembrança total, ou seja, a apreensão do eu por ele mesmo.

“Para compreender este paradoxo essencialmente bergsoniano, é preciso lembrar qual é, para Bergson, a atitude habitual do espírito. Essa atitude, Bergson não cansou de repetir: é a atenção à vida. Uma consciência prática, sempre orientada para o futuro, dedica-se a concentrar os seus esforços naquilo que transforma sem cessar o presente em futuro. Do passado, apenas apreende e aceita o que pode ajudá-la a esclarecer o que é, a preparar o que será. Ela é como uma ponta móvel que coincide com o presente e mergulha com ele rumo ao futuro. Estar atento à vida é ser este ponto e esta ponta, o máximo de concentração, mas também o mínimo de espaço, resserrement (contração) extrema do ser no ‘pequeno círculo traçado ao redor da ação presente’.

“Estar atento à vida, portanto, é estar atento ao presente, ao futuro, à ação, a tudo o que delineia à sua frente no campo prospectivo, extraordinariamente contraído, do olhar; ao mesmo tempo, ainda que Bergson não se expresse nesses termos, é também estar desatento à sua própria vida – se por sua vida entende-se o imenso campo retrospectivo onde se conservam as lembranças, que Baudelaire denominava de profundidade da existência”.

Georges Poulet, em O espaço proustiano, Imago Ed., 1992, p. 127-8.


sexta-feira, 15 de junho de 2012

A profundidade


“(...) a profundidade perspectiva da geometria e da pintura ocidental não é mais que um caso particular e materializado de uma espontânea hierarquia das figuras. Nada é mais significativo que o exemplo da pintura: apesar da insipidez funcional das duas dimensões do quadro, recria-se espontaneamente uma terceira dimensão, não só graças aos processos ocidentais do trompe l´oeil, como também numa simples defasagem de valores ou cores que fazem ‘girar’ uma superfície objetivamente plana, mas sobretudo no desenho e na pintura do primitivo, da criança, ou do Egito antigo, a imaginação reconstitui espontaneamente a sua profundeza enquanto as figuras se sobrepõem verticalmente no plano do quadro. É essa a razão essencial pela qual todas as escolas de pintura  ̶ salvo a do renascimento  ̶ desdenham deliberadamente os ‘artifícios’ da perpectiva geométrica, sabendo bem que a terceira dimensão é um fator imaginário acordado a qualquer figura como por acréscimo. É que todo o espaço ‘pensado’ comporta, em si mesmo, domínio da distância, que abstraída do tempo, espontânea e globalmente registrada, torna-se ‘dimensão’ na qual a sucessão do distanciamento se esbate em proveito da simultaneidade das dimensões. Pode parecer pôr-se de parte o tão célebre pseudoproblema que consiste em interrogarmo-nos sobre qual sensação nos provoca a profundidade. Porque a profundidade não é qualitativamente distinta da superfície, pois que o olho se ‘deixa enganar’. Mas é distinta, temporalmente para o esforço e algebricamente para o conceito. Globalmente as três dimensões são dadas no seio da imagem. Do mesmo modo que a nenhum psicólogo se põe o problema de saber de onde vem a primeira ou a segunda dimensão, também não nos devemos interrogar sobre a origem da terceira. É o tempo e a espera que transformam essa dimensão em distanciamento privilegiado, mas primitivamente para o imaginário, como para a vida, para o pintinho que quebra a casca e corre para o verme, o espaço revela-se de pronto com suas três dimensões. O espaço é, constitucionalmente, convite à profundidade, à viagem longínqua. A criança que estende os braços para a lua tem espontaneamente consciência dessa profundidade ao alcance do braço, e só se espanta por não atingir imediatamente a lua: é a substância do tempo que a decepciona, não a profundidade do espaço. Porque a imagem tal como a vida não se aprende: manifesta-se. A ‘relação de conjunto’ dos fragmentos topológicos está ligada à própria concepção desses fragmentos como plurais, ao ato sintético de qualquer pensamento manifesto” .

Gilbert Durand, em As estruturas antropológicas do imaginário, Martins Fontes, 2002, p. 409-11.




quinta-feira, 14 de junho de 2012

Incomunicável vivência

"Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de ideia e saudade de coração..."


RIOBALDO TATARANA.







Se acordo e não sei onde estou,
também não sei quando é
nem quem sou.

Basta saber onde está meu pensamento;
o lugar em que se funda esse espaço
é forma a priori da fantástica forma
do meu ser.

Assim, a cada amanhecer,
saio e sigo em frente, estradas,
em silêncio, a dizer seu nome.

O que definitivamente não é bom:
se não estou perto de você,
também não posso estar em lugar nenhum.


segunda-feira, 11 de junho de 2012

[realidades]

"Quando eu era mais jovem, podia lembrar-me de qualquer coisa, tivesse ou não acontecido; mas agora as minhas faculdades estão decaindo e em breve só serei capaz de me lembrar das coisas que nunca aconteceram".

- Mark Twain, Autobiografia.


Epígrafe
de O risco do bordado,
de Autran Dourado.



domingo, 10 de junho de 2012

Entre lugar II


– E a grande aventura de meu tempo, as viagens espaciais? – disse eu.

– Faz séculos que já renunciamos a esses translados, que foram de certo admiráveis. Nunca pudemos nos evadir do aqui e do agora.

Com um sorriso acrescentou:

– Além disso, toda viagem é espacial. Ir de um planeta a outro é como ir à chácara defronte. Quando entrou neste quarto, estava executando uma viagem espacial.

JORGE LUIS BORGES, em “utopia de um homem que está cansado”, d` O Livro de areia.


O "homem humano" V - Medeiro Vaz


 “Montante, o mais supro, mais sério – foi Medeiro Vaz. (...) Medeiro Vaz, em lugares assim, fora de guerra, prazer dele era dormir com camisolão e barrete; antes de se deitar, ajoelhava e rezava o terço. (...) Medeiro Vaz, nunca perdia guerreiro. Medeiro Vaz era homem sobre o sisudo, nos usos formado, não gastava as palavras. Nunca relatava antes o projeto que tivesse, que marchas se ia amanhecer para dar. Também, tudo nele decidia a confiança de obediência. Ossoso, com a nuca enorme, cabeçona meia baixa, ele era dono do dia e da noite – que quase não dormia mais: sempre se levantava no meio das estrelas, percorria o arredor, vagaroso, em passos, calçado com suas boas botas de caititu, tão antigas. Se ele em honrado juízo achasse que estava certo, Medeiro Vaz era solene de guardar o rosário na algibeira, se traçar o sinal-da-cruz e dar firme ordem para se matar uma a uma as mil pessoas. Desde o começo, eu apreciei aquela fortaleza de outro homem: o segredo dele era de pedra”.

Riobaldo, em Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.

Medeiro Vaz morreu sob chuva torrencial, protegido pelos couros erguidos pelos jagunços. Antes do último suspiro, indica Riobaldo para liderar o bando.


Missa das onze e meia

Igreja de Nossa Senhora da Luz. Foto do autor.

10º Domingo do Tempo Comum
10 de junho de 2012

"Ele respondeu: 'Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?' E olhando para os que estavam sentados ao seu redor, disse: 'Aqui estão minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe'" (Marcos 3, 33-35).

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Após encontrar pela primeira vez Maria Deodorina, nas margens do Rio São Francisco, Riobaldo se sente como se "tivesse acertado de encontrar, para o todo sempre, as regências de uma alguma a minha família".


Sentido maior

"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? É o que às vezes penso (...)" (fala de Riobaldo Tatatarana, açoitado por ventos fortes, o de ignorância e o de humanidade).



Comigo vai
o amor que tenho.
Comigo vai
bem junto de mim.
Anda comigo,
oprimido ao peito,
de onde sair
não há mais jeito.




sábado, 9 de junho de 2012

Lessa


Na sua última crônica para a BBC Brasil (transcrita abaixo), enviada na quinta-feira, 07, Ivan Pinheiro Themudo Lessa parecia "brincar" de estar morto. Ivan Lessa morreria no dia seguinte, ontem, 08 de junho, aos 77 anos. 

Foto: BBC Brasil; Fonte: g1.com.br
Orlando Porto
Minhas contribuições de frasista em homenagem ao mestre Millôr e Roland Topor.

Orlando Porto. Taí um nome como outro qualquer. Podia ser corretor de imóveis, deputado, ministro, farmacêutico. Mas não é. Trata-se de um anagrama de um escritor francês - e ator e ilustrador bom e autor e figurinha difícil francesa e aquilo que se poderia chamar de "frasista".

Feio como um demônio, no meio da década de 50 cansei de dar com ele dando comigo lá pelo Boulevard St. Germain, cheretando o Flore, o Lipp, fazia uma cara que quem ia dizer algo importante e logo sumia na companhia do Jean-Pierre Léaud, aquele maluquinho dos filmes autobiográficos do Truffaut.

Dupla estranha. Os desenhos do -esse seu nome, artístico ou de batismo, Roland Topor- eram bacaninhas. Mas sempre foi Orlando Porto para mim.

Fez cinema também. O Inquilino do Polanski, o Reinfeld de Nosferatu, do Werner Herzog. Até que bateu o que ocultava seus pés: umas botas estranhas como ele.

De vez em quando, numa revista esotérica, dou com ele. Ei-lo numa em inglês com "100 boas frases para eu matar agorinha mesmo". Se chegou ao fim, e chegou, foi pelo cachê. Meros galicismos literários.

E aí trago à cena, mais uma vez, porque cismei, mestre Millôr Fernandes. Esse era profissional. Nada a ver com "frasista". Trabalhava com a enxada dura da língua. Nunca para dar a cara no Flore, principalmente com Topor e Léaud.

Reli umas 100 frases do Orlando, ou Topor, e não resisti à tentação de, em algumas delas dar-lhes uma ginga por cima e outra por baixo, à maneira do frescobol querido do mestre, só para exercitar os músculos muito fora de forma.

Cem razões: Faço por bem menos, mas mais Copacabana e Leblon. Algumas raquetadas minhas em homenagem ao mestre cuja falta continuo sentindo:

- Melhor maneira de verificar, antes, se já não estou morto.
- Mas não se mata cavalos e malfeitores?
- Pelo menos eu driblaria o câncer.
- Milênio algum jamais me assustará.
- Apanhei-te horóscopo! Pura enganação!
- Levo comigo a reputação de meu terapeuta.
- Pronto, agora não voto mais mesmo! Chegou!
- Aí está: uma cura definitiva para a calvície.
- Enfim cavaleiro do reino de sei lá o quê.
- A vida está pelos olhos da cara. Pra morte eles fazem um precinho especial, combinado?
- Enfim, ano bissexto nunca mais. Esses ficam para o Jaguar. O resto pro Ziraldo.
- Ao menos é uma boca de menos a sustentar.
- Só quero ver quanta gente vai sincera no meu funeral.
- Pronto! Inaugurei estilo novo: Arte Morta.
- Sabe que minha vida não daria um filme. O livro eu já escrevi. Deixem o desgraçado em paz, peço-lhes.
- Custou, mas estou acima de qualquer lei que vocês bolarem aí.
- Levou tempo, mas cortei enfim meu cordão umbilical.
- Roncar, nunca mais. Nem eu nem ninguém ao meu lado.
- Que desperdício nunca ter fumado em minha vida!
- Consegui preservar o mistério sempre girando em meu torno.
- Maioria silenciosa? Essa agora é comigo.
- Na verdade, nunca me senti à vontade nessa posição incômoda de cidadão do mundo.
- Ei, juventude, pode vir que pelo menos uma vaga está aberta.
- Emagrecer é isso aqui.
- Agora é conferir se, do outro lado, sobraram tantas virgens assim.

E assim, cada vez que um "frasista" passar por perto de mim, leve uma nossa: minha e de Millôr. Dois contra um, a gente ganha mole.